4 de março de 2011

seborica



Há um sebo na cidade onde moro. Apenas um. Ele fica logo abaixo do sobrado onde vive o dono, numa garagem mal-iluminada e exígua, entre uma casa de materiais de construção e uma loja de telefonia celular. Desde que abriu suas portas, o sebo nunca mudou de ponto. Ao transeunte que o vê da calçada, mais parece uma batcaverna literária isolada da civilização. Mas, uma vez dentro, é inevitável a sensação de que todo e qualquer livro antigo e usado do mundo estão ali. Uma única lâmpada de 40 watts ilumina o recinto que é, de fato, cavernoso. O chão é de cimento batido e rústico, não há janelas e a quantidade de poeira é incomensurável. Os livros não estão catalogados, nem tampouco organizados nas estantes por autor, tema, ordem alfabética ou qualquer categoria que o valha. Por isso, ir ao sebo da minha cidade significa, ipsis litteris, ter disposição para garimpar um título em meio a um oceano de livros. Se acaso o bibliófilo for uma vítima de claustrofobia ou rinite alérgica, pode esquecer; a ele não será possível passar pela experiência sensorial ímpar que é este sebo.

Todos na cidade conhecem o proprietário do sebo e sua mulher, que se revezam no atendimento aos clientes.  Por "atendimento" entenda-se sentar numa cadeira à entrada da gruta e passar o tempo na companhia de um jornal, do rádio de pilhas e, claro, de livros. Suponha que você, de passagem pela minha cidade, queira comprar uma edição em capa-dura de "Os Lusíadas", impresso em 1956. Há um exemplar deste no sebo, talvez até dois, da mesma edição. Mas os donos não sabem disso, ou não se lembram e nem têm registro algum dos livros que são comprados e dos que, semanalmente, chegam do Rio de Janeiro. E mesmo que soubessem, não poderiam lhe dizer onde exatamente, no meio de milhares de velharias, estaria o seu xodó de Camões. Porque esse sebo, mais do que um empreendimento comercial, é fruto da paixão de seu proprietário por livros antigos. O exemplar mais caro da loja custa módicos oito reais, quando se trata de um livro mais atual, ainda que de segunda-mão. Todos os outros, independentemente do número de páginas, título e ano de edição, custam simbólicos três reais.

Em cidade do interior é comum que os habitantes identifiquem uns aos outros pelos apelidos. Tanto que, não raro, um indivíduo passa uma vida inteira sendo chamado pelo apelido, inclusive em ocasiões formais. Se o sujeito fizer questão de usar o nome com o qual seus pais o registraram em cartório, corre o risco de não ser reconhecido na praça. O motorista particular de alguns moradores daqui, por exemplo, atende pela nobre alcunha de "Marreco". Não há um cidadão dessa cidade que não conheça o Marreco, o camarada mais prestativo e pacífico que se possa conceber. Por outro lado, o nome de batismo do Marreco é propriedade intelectual exclusiva de sua mãe; ninguém mais possui essa informação.

Pois o mesmo ocorre com o proprietário do sebo. Hoje um senhor de quase setenta anos, ele sempre foi conhecido pelo apelido de "Borica". Com a passagem do tempo, a chegada dos filhos e netos, dos cabelos brancos e da respeitabilidade da idade, todos passaram a chamá-lo de "seu" Borica. Quis o destino que o "seu" Borica tivesse uma epifania artístico-mercadológica para nomear o lugar onde guarda e eventualmente vende seus livros raros: "Seborica". Simples, pertinente, genial. Uma sacada dessas nem o Washington Olivetto e todo o seu séquito de publicitários teriam. "Livros usados, edições raras e exemplares esgotados?  Você encontra no Seborica". Claro que o meu amigo, por sinal em débito comigo numa edição há muito fora de catálogo do Kundera, não usaria esse slogan. Se bem que pudesse. Ainda assim, não combina com ele, nem com o sebo e muito menos com a cidade. Assim, na entrada da garagem escura onde moram os livros antigos na minha cidade, lê-se a inscrição pintada com letras azuis, não muito grandes: "Seborica". O restante do marketing fica por conta do carisma do dono e do boca-a-boca dos clientes, os fiéis escudeiros desse Quixote dos sebos.

A cada seis meses vou ao Seborica. Tem gente que, no mesmo intervalo de tempo, vai ao dentista, aplica botox ou troca de carro. Afinal, cada um faz o que melhor lhe convém no tempo de que dispõe. Assim, duas vezes por ano é a minha taxa de freqüência ao Seborica quando, então, volto para casa com sacolas entupidas de livros e as mãos pretas de poeira. Mas ratos de sebo não se contentam com pouco; ainda deixo uma lista modesta com os exemplares que faltaram para a próxima visita. É um ritual interessante pelo qual tento reencontrar minha cidade através dos livros. Fico até três horas enfurnada na penumbra do Seborica, aspirando o ar de antiguidade que o local exala. De alguma forma muito peculiar e que me foge à compreensão, reside em mim a esperança de que, depois dessas horas a hibernar no universo mágico do sebo, eu possa sair de lá com uma identidade distinta, tal qual Bruce Wayne transforma-se  em Batman no subsolo de sua mansão em Gotham City. Como se o escuro, a clausura, o pó e a literatura que não se encontra em livrarias convencionais pudessem fazer de mim alguém mais citadina e adequada, menos refém de desejos distantes e vãos.

O Seborica não possui tal poder, é claro. Como também não o possuem psicanalistas, antidepressivos e muito menos literatura de auto-ajuda. Entretanto, o sebo da minha cidade tem lá seus encantos, a começar pelo nome, pela quantidade de exemplares e pelos preços, estes sim, mágicos. Hoje foi dia de sebo. Placar: duas sacolas de velharias insubstituíveis, cinco espirros, trinta reais. Teve Kafka, Zola, Vargas-Llosa, Moravia, Calvino, Slevo, Dickens, Maupassant, Lawrence e Tolstói. Posso não ter saído de lá mais citadina, mas a minha biblioteca, por sua vez, ficou sem dúvidas mais universal. Porque há tantos livros empilhados num espaço tão confinado e porque não há catalogação alguma, ir ao sebo na minha cidade implica não apenas garimpar o exemplar desejado, mas, como em qualquer atividade de garimpo, deparar-se com um diamante em meio ao cascalho.

A jóia de hoje estava oculta, esquecida entre um Código de Direito Civil de 2003 e uma edição em capa-dura de "Incidente em Antares". Como se não bastasse, os três eram os últimos da prateleira mais baixa dos fundos, órfãos de qualquer atenção mais específica. Talvez estivessem mesmo à minha espera, ou pelo menos é assim que gosto de pensar. De qualquer forma, a visita de hoje ao Seborica rendeu-me um tesouro pelo qual eu buscava há anos, sem sucesso. As primeiras palavras que li, e que capturaram meu olhar, foram "Maurice Druon". Animada, empurrei o Código Civil para um lado e retirei o Veríssimo da frente. Então, o sol entrou na garagem escura e foi uma lufada de vento fresco o que senti no rosto: o livro que me esperava na última prateleira do sebo, na parte mais escura e poeirenta, rente ao chão, era o livro pelo qual eu mesma ansiava: "O Menino do Dedo Verde".

Trata-se da segunda edição, de 1973, com tradução de D. Marcos Barbosa, de uma certa "Livraria José Olympio" editora. Na época, Druon era Ministro da Cultura da França e, na contra-capa, vê-se uma fotografia do autor, ainda jovem e garboso. No final do livro, um mimo: duas cartas publicadas pela "Folha da Tarde", de Porto Alegre, em 29 de março de 1973, ambas sobre as impressões que "O Menino do Dedo Verde" deixou em suas autoras: Ivete Brandalise, jornalista e, na época, comentarista de TV e Rachel de Queiroz. Algumas páginas têm pequenos rabiscos de caneta hidrocor cor-de-rosa, um sol desenhado com giz-de-cera e algumas manchas de gordura: sinais indeléveis de que pelo menos uma criança já leu esse livro. Sinais que, de mãos dadas com o amarelado do papel e o cheiro de livro velho, só aumentam o seu valor e a estima que tive por ele mesmo antes de comprá-lo.

"O Menino do Dedo Verde" é o único livro de literatura infanto-juvenil de Maurice Druon, célebre por seus romances históricos e artigos políticos. Trata-se da história de Tistu, um menino que se reconhece ímpar desde o nascimento e que, depois de ser rejeitado pela escola por "não ser como todo mundo", passa a ser educado pelo jardineiro da família, o Sr. Bigode. É no jardim de sua casa que Tistu descobre ter o que o Sr. Bigode chama de "talento oculto": o polegar verde invisível. Onde quer que Tistu toque, nascem flores, ramos, folhas e árvores de toda espécie. Seu talento se aprimora ao longo da história e, ao final, Tistu pode inclusive "inventar" as espécies verdes que desejar. O menino mora em Mirapólvora, é belo, bom e sábio, e seu pai é o homem mais rico, poderoso e influente da cidade, dono de uma fábrica de canhões.

Nas palavras do editor: "(...) sua (de Tistu) missão é despoluir, humanizar, reintroduzir a poesia num universo do qual ela se encontra exilada. Sobre um mundo cinza e enlutado, Tistu deixa impressões digitais misteriosas que suscitam o reverdescimento e a alegria. Druon foi capaz de criar um símbolo rico de conotações e de apelos, um significante símbolo cujo significado jaz um pouco em cada leitor, capaz de florescer ao descobrir-se também possuidor de um polegar verde (...) Livro para reler ao longo dos anos, se temos a sorte de descobri-lo na idade cronológica certa; livro para meditar em toda a sua riqueza, se já o recebemos adultos".

Eu poderia contar aqui a história de Tistu, o que ele faz com seu polegar verde, como revoluciona o universo a que pertence e como o livro termina. Mas isso seria uma forma de duplo homicídio, em que morrem o desejo de ler e a necessidade de buscar esse tipo de livro em sebos. Claro, você pode comprar a última edição, de número 82 (!), por trinta reais em qualquer boa livraria do país. Mas, nesse exemplar, não encontra rabiscos de canetinha, sóis desenhados em crayon, manchas de gordura, nem a história que vem dentro da história de um livro usado. E, além do mais, fica aqui o desafio para o leitor encontrar um sebo de nome mais genial que o da minha cidade.

"O Menino do Dedo Verde" dorme agora em minha estante, entre "O Processo" e "Germinal". Talvez Tistu consiga, com a sua poesia imortal de menino, colorir um pouco o universo de chumbo de Kafka e o ambiente árido de Zola. Enquanto ele tenta, já batizei sua primeira página com a minha caligrafia grande e marcada de professora, numa dedicatória que é pura antecipação de um sonho, um presente que há de esperar ainda alguns anos para ser ofertado: 

"03/03/2011
Para o meu filhote, Arthur, com todo o amor do mundo. Que você seja sempre esse menino colorido, um menino de dedo verde.
Um grande beijo,
mamãe". 

11 comentários:

  1. 2a. Edição do Menino do Dedo Verde!!!! Coisa raríssima sim... Talvez essa tenha sido a edição que li qdo criança. Belicista do jeito que era, na onda militar dos anos 70, achei Tistu uma ameaça ao progresso e a ordem. Pois Eh! me valeu um "0" bem redondo na interpretação do livro.... Parabéns Roro por esse achado e obrigado por seu texto que me remeteu la no passado, resolvendo os traumas de infância :))) Bjus e contunue fazendo a diferença na vida das pessoas.

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  2. Ei, Andre! Mas o Tistu é, de fato, uma ameaça à ordem e aos paradigmas pré-estabelecidos. Por isso mexe com a gente. Muito obrigada pelo seu comentário aqui. Vale muito pra mim, de verdade. Beijo imenso, meu querido!

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  3. Anônimo7.3.11

    Roberta, vou dar umas voltas nesse trem. Blog de muito bom gosto. Vou tirar um tempinho pra ler seu conto. Acho que seria legal a gente conversar pelo msn. Você escreve, ei?! Sucesso para o Blog e os livros que vierem. Beijão, amigona.

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  4. Ei, Paulo, meu amigo, meu irmão... Obrigada pela visita , ainda mais, por ler meus escritos. Será que ainda publico um dia...? Beijo muuuito grande!

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  5. Anônimo25.3.11

    Parabéns pelo Blog, adorei a crônica do Seborica, o mundo realmente precisa ler mais e os preços de lá são precinhos. bjos e mais um vez parabéns, daqui de Rondonia já coloquei no favoritos do meu computador o seu Blog. Valeu.

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  6. Renato! Que surpresa maravilhosa! Eu jamais imaginaria que você leria essa crônica! Saudades, amigo! É uma honra saber que o Expresso roda também pelas bandas de Rondônia. Um abraço gigante, amigo!

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  7. Roberta, em primeiro lugar, parabéns pela qualidade absurda da sua escrita. Sinceramente, lembrou-me Rubem Braga: você aparentemente mostra o objeto de sua crônica como uma coisa absolutamente simplória, sem nenhuma grandeza, mas é aí mesmo que reside sua singeleza, seu encanto. Assim como o Renato, também sou filho do proprietário do sebo e senti não só alegria, mas também imenso prazer em ler um texto tão delicioso. Sucesso pra você, é hora de começar a pensar em publicar suas crônicas ou o que mais! Grande abraço!

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  8. André, como agradecer um comentário tão lisonjeiro e sincero? Rubem Braga é um mestre para mim, e ter o texto comparado ao dele é uma honra. Honra ainda maior é poder trazer prazer e alegria para você e o Renato, em especial, por fazerem parte desse universo que relatei em "Seborica". Será que um dia pinta uma publicação, André? Vamos ver, amigo! Um grande abraço e, mais uma vez, obrigada por participar do Expresso, querido!

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  9. luciene28.3.11

    Nossa, fiquei muito emocionada ao ler esta crônica, é perfeita. O texto te prende de uma forma, que não te cansa, dá vontade de rir e chorar. Lembrei-me dos livros empoeirados... estive lá semana passada, ainda pensei em falar pra minha mãe (esposa do "burica")..Ei, por que não tira a poeira dos livros? deixei pra lá. Ia tirar a simplicidade do negócio...Mas me lembro mesmo de ter visto um código civil antigo, no fnal da prateleira, com certeza deve servir em muito pra algum advogado. Mas deixo aqui o meu aplauso, que faço de pé. Adorei e continuarei a ler outros. Luciene filha do Burica - Angra dos Reis

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  10. Obrigada, Luciene! É verdade. A poeira faz parte de todo o negócio, não é? Abraço enorme para você, e bem vinda ao Expresso!

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