17 de março de 2011

morte

A mãe da minha irmã morreu há quatro dias. Morrer é algo tão brutalmente doloroso e destituído de beleza, que eufemismos tais como "falecer", "expirar", "partir" e "ir ao encontro dos seus" são um despropósito sem precedentes. A morte é um quadro grotesco, sem qualquer noção de proporção e profundidade, pintado com todos os possíveis matizes de negro e cinza da paleta mórbida do ceifador. Não há o menor vestígio de cor e nenhum raio de luz nesse cenário; a pintura da morte é sombria, impactante e gélida.

Até o presente momento, o ceifador tomou poucas pessoas realmente íntimas e caras a mim, nessa ordem: meu avô Juca, que morreu de derrame quando eu tinha seis anos e cuja última frase proferida antes de fechar os olhos cor de mel que eu adorava foi: "Nair, cadê Roberta?". Ele falava o meu nome de um jeito único; deixava os "erres" vibrar no palato, de forma que, em sua voz, eu era a "Roberrrta"; meu tio Alarico, que levava a mim e meus primos para passear em seu Fusca amarelo e deixava que nós, todos moleques àquela época, empoleirássemos nos pára-choques do carro, enquanto ele dirigia devagar pela estrada de terra, rindo-se da criançada comendo poeira e do nosso pseudo-equilibrismo tresloucado. Meu tio amava música clássica. Numa tarde de julho, com o sol morrendo vermelho atrás do Fusca, ele parou perto de um bambuzal enorme, ligou o toca-fitas e nós ouvimos "A Cavalgada das Valquírias", até o anoitecer. Ele chorou de emoção naquele dia e eu também. A vida e a morte são paradoxos bizarros, i.e., meu tio foi um homem que passou a vida inteira na lida com plantações, bois de corte, gado leiteiro e, ainda assim, amava e chorava por Wagner e pelo ocaso.

Então foi a vez de minha avó Nair, cuja morte abalou as estruturas, os valores e a união de toda uma geração da minha família. A vovó tinha essa mania de gente antiga; ela olhava os netos e netas e dizia: "Mas como você engordou, está muito bonito!". Ela jamais falava os nomes das pessoas depois que morriam, porque acreditava que seria como se os chamássemos de volta à vida, o que os perturbaria. Assim, minha avó perdeu o marido e um filho e, depois disso, nunca mais pronunciou os nomes "Juca" e "Alarico". Em seguida o ceifador tomou minha tia Lígia, irmã daquele, que eu amava como à própria vida. Ela fazia os melhores bolos-mármore, as mais deliciosas brevidades, o mais inesquecível arroz com canjiquinha e bananas fritas e os mais admirados pastéis de carne. Enquanto as férias não vinham e eu esperava inconsolada para ir à fazenda, minha tia juntava potes incontáveis de nata; quando eu chegava, ela me deixava "bater" a gordura do leite com uma colher de pau, até virar manteiga de verdade, amarelinha, com gosto de roça. Minha tia teria adorado conhecer o meu filho. E tenho certeza de que o mimaria como o fez comigo. Anos depois se foi Carlinhos, filho do tio Alarico, que morreu de enfarto fulminante numa noite em que fazia um frio fora dos padrões. Ele tinha 47 anos, dois filhos adultos e uma esposa que é um anjo. A morte do meu primo foi estúpida, incompreensível e inaceitável. Na última vez em que estive com ele, Carlinhos levou meu filho para brincar com os pintinhos no galinheiro, moeu milho no paiol com ele e, juntos, subiram no telhado da casa. Depois, ele lavou as louças para sua mãe e, quando nos despedimos, abraçou-me apertado. Ele era o meu tio novamente, em todos os aspectos.

Há valores que adquirimos na vida através dos meios em que transitamos. Outros imputamos em nossas mentes sozinhos, porque simpatizamos com as idéias ou porque acreditamos que refletem nossa personalidade. Os demais, aprendemos e reproduzimos a partir de nossos pais. Eu não estive presente no velório de nenhuma dessas pessoas cujos poucos detalhes citei acima, nem fui ao enterro de nenhuma delas. Meu pai também não. Eu e ele compartilhamos uma repulsa inominável de ver gente morta, velar o corpo inerte e frio e, em seguida, vê-lo ser trancado numa caixa de madeira e fechado com tijolos e cimento no interior de um "jazigo". Aliás, este vocábulo causa-me uma revolta contrita nesse contexto, pois jazigo, antes de ser sepultura e tumba, é "um lugar em que existem camadas, veios ou filões de minerais no seio da terra: jazigo de diamantes; o mesmo que jazida e mina". O signo "jazigo" é dotado de um significado cujo conteúdo remete a fonte, veias, seio, minas e morada, ou seja, a semântica envolvida na palavra é pura vida e origem. Daí minha indignação quanto ao uso de "jazigo", dotado de um significado tão belo, para um significante e uma forma tão contraditória ao mesmo. Uma sepultura não é morada, nem fonte e muito menos origem de nada; é uma forma bizarra e medonha de encerrar a vida.

Nunca penso na minha própria morte. Nem mesmo depois que meu filho nasceu, tal idéia passou a me perturbar. Por outro lado, a morte das pessoas que amo é algo profundamente impactante para mim, algo que não vejo de forma alguma como natural. Aliás, jamais entendi pessoas que dizem que a morte "é a coisa mais natural da vida", a única certeza do mar de incertezas que é viver. São incríveis as maneiras que os indivíduos encontram para se confortar e "engolir" a tragédia que é a morte. O que há de natural em morrer? Natural é viver, desabrochar, construir. Então, para os vivos que ficam não enlouquecerem, jargões estapafúrdios e de parco valor reconfortante como "a vida continua", "é o ciclo da vida", "morre um para nascerem milhares", são nos empurrados goela abaixo. E ai de quem não os aceitar ou questionar; acaba por cair na malha fina dos que têm a vida determinada pelos mortos.

Estou muito soturna hoje. Não deveria escrever sobre a morte e, ao fazê-lo, talvez fosse mais seguro para mim usar um pseudônimo ou nem publicar o texto. Porque minhas opiniões sobre a morte e, mais especificamente, sobre o ritual que envolve o adeus, o sepultamento, enfim, o luto, não fazem parte do senso comum; são idéias que podem gerar revolta, antipatia, incompreensão, julgamentos prévios acerca do que represento enquanto unidade viva. Entretanto, cabe ao escritor dizer o que não pode ser nem é comumente dito. Por isso autores, ou seja, escritores publicados e conhecidos, utilizam-se de pseudônimos, para proteger sua imagem pública e evitar possíveis equívocos exegéticos. Eu não sou autora; não tenho editor, não publiquei nada do que escrevo. O máximo de "público" que alcanço são os leitores cativos deste blog e um ou outro guerreiro que leia as postagens na íntegra. Dessa forma, presunção literária à parte, não me importo muito em saber que serei alvo de pensamentos nada blandiciosos por um texto como este.

Existem dois tipos de escritor: o que escreve para viver - os autores - e o que vive para e por escrever - os poetas malditos, os blogueiros, os futuro-ex-autores frustrados. E o segundo tipo, ao qual me encaixo, escreve como forma de catarse, porque não conhece outra maneira de se comunicar consigo mesmo e de compreender a si mesmo, a não ser através da escrita. Somos assim: escritores onfalópsicos, que contemplam o próprio umbigo e a vida ao seu redor e vomitam as impressões que têm sobre ela em forma de palavras. Um exemplo paralelo seria o do tycoon-nerd mirim, Mark Zuckerberg, que concebeu a idéia do Facebook, a maior rede social do planeta, após ter levado um fora descomunal da namorada. Bom para ele; sua catarse gerou lucros, mudou a interface da web e o transformou no bilionário mais jovem do mundo.

O cenário para escritores introspectivos, fin de siècle, nostálgicos, falidos e chegados a uma elucubração é diferente do mise en scène dos gênios da informática; nem sempre a catarse literária dá certo. Às vezes a realidade, o cotidiano e mesmo a imaginação são tão bolorentas que é aconselhável respirar fundo, contar até dez e não escrever absolutamente coisa alguma. Nessas horas, para evitar me expor ou escrever uma porcaria de proporções blasfemas, eu leio; um livro por dia, se for necessário. Mas, então, chega o momento de sair do casulo, a mente fervilhante domina os olhos e os dedos e, simplesmente, escreve-se. Como dizia a Clarice: "escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser. E se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias".

Ocorre que a mãe da minha irmã morreu. Teve um enfarte fulminante numa manhã de domingo e... pronto. Num estalar de dedos do ceifador, sua vida transformou-se em inércia para sempre. A morte da primeira mulher do meu pai, o sofrimento acachapante de minha irmã e dos seus filhos e o conforto que tentei ofertar-lhes, em vão, tirou-me de órbita e cobriu meu céu com um manto cinza que era a própria morte a rondar-me a alma, os desejos e a vontade de viver. Não escrevi desde então; apenas li e elucubrei. Mas não me bastou chorar; preciso chover. Preciso expurgar uma tromba d'água de mim para que eu não afogue de dentro para fora. Necessito processar o luto e o seu impacto fazendo um temporal, vazando uma enchente de mim; para voltar à sanidade, para delimitar contornos, para vomitar palavras.

A mãe da minha irmã era católica, muito religiosa e ia semanalmente à missa de domingo. Aliás, a mãe da minha irmã era muitas coisas; a religiosidade constituía apenas uma de suas múltiplas facetas. Era também uma mulher vaidosa, bem-criada, generosa, honesta, cortês, discreta e que amava sua filha e seus netos. E talvez por ela não ser a minha própria mãe, nem o meu pai - pessoas a quem a menor referência de morte é inconcebível, intolerável e inaceitável para mim - ou porque a solidão, o sofrimento e o desespero que vi refratados nos olhos de minha irmã, que são os olhos do meu pai, e também os de meu avô, talvez por essas razões e outras que desconheço, fui ao velório dessa mulher, que me conhece desde que nasci e que convive comigo e com minha família amigavelmente desde então. Velei seu corpo ao lado de minha irmã e sobrinhos até alta madrugada, com os olhos fixos nas velas elétricas, velas com chamas de mentira da capela, porque não conseguia fitar aquele rosto inativo, que era tudo o que se podia ver em meio às flores amarelas, um rosto que parecia querer acordar a qualquer momento. Quando o sol se pôs, minha tristeza aumentou de tal forma que tudo o que eu desejava era virar um líquido qualquer para escorrer pela terra, ou um gás muito leve, para subir em direção ao crepúsculo. Não há sentimento de derrota mais contagiante do que a morte. 

Na manhã seguinte, porque achei uma tortura excruciante a cantoria lúgubre das beatas, escrevi um texto de homenagem a ela e à família. Valores e crenças não são debatíveis; eu já deveria saber disso a essa altura da vida. Mas de alguma maneira muito insensata, ou muito intuitiva e, de qualquer forma, totalmente bem-intencionada, quis proporcionar alguma leveza ao ambiente, um sopro carinhoso na consciência de minha irmã, algo que tivesse o valor e o toque de flores vivas, e não aquelas mortas no caixão e as sem raízes da coroa. Eu disse que escritores muitas vezes precisam escrever para compreender melhor a si mesmos e o mundo que os rodeia; mas não fui completamente sincera ou, pelo menos, omiti o essencial sobre a escrita catártica. Por vezes escreve-se para tentar enxergar a realidade como maré vazante e parar de remar contra  ela, e sim a seu favor. Quando há correnteza no mar, a primeira reação do nadador é dar braçadas contra a maré; afinal, a correnteza pode levá-lo para qualquer lugar, até mesmo para o mar alto. Nadando contra a correnteza, porém, por mais exímio que seja, o nadador há de se afogar. Se, no entanto, nadar a favor da maré e boiar para descansar quando as cãibras vierem, o mar o devolverá para a areia.

Toda essa digressão mascarada com metáforas de mar tem apenas uma finalidade: dizer aos céticos como eu, aos que não aceitam a morte e escarnecem dos rituais, das flores mortas, das cantorias lamurientas e dos jazigos, que ela é, sim, uma certeza. E que talvez seja melhor fazer as pazes com o ceifador e com a forma como os vivos lidam com ele do que passar a vida nadando contra a maré e se afogar na praia. Foi o que fiz, ou ao menos tentei fazer com as palavras, instrumentos meus; escritas para mim, para a família que ficou, para quem foi, pelo discernimento e equilíbrio de quem ainda está no páreo. De manhã, estas foram as palavras que li para as pessoas que foram ver a Dulce pela última vez:

Não é comum na nossa cultura que um dos membros da família tome a palavra, num dia onde a dor da perda dilacera. Acontece que a mãe da minha irmã não está mais aqui com a gente. E eu, que só sei confortar as pessoas com as palavras, senti esse ímpeto de trazer alívio a todos que a amavam. Vejam como as reviravoltas da vida são curiosas. A Dulce dizia que o seu maior medo era morrer sozinha. Mas ontem, enquanto velávamos seu corpo de rosto sereno, como que a dormir profundamente, percebemos que a Dulce não ERA sozinha, muito pelo contrário. Ela poderia até ter seus momentos de solidão, mas quem de nós não tem...? Muitos a admiravam e muitos sentiram profundamente a sua perda. E me conforta pensar que o seu espírito leve pegou carona nas costas de um beija-flor faceiro e voou para longe, para aonde o céu é mais azul e o ar, mais puro. E nesse momento, tenham certeza, Dulce não estava só. Todos que a amavam estavam lá com ela, não de corpo presente, mas vivos em seu coração. Por isso solidão é tão relativo. Tem gente que vive e morre cercado de gente e, no meio dessa multidão, parte sozinho porque não há um amigo verdadeiro sequer que habite a sua alma. Com a Dulce foi diferente, memorável e lindo. Estávamos todos com ela, o tempo todo, em pensamentos, energia, preces, amor e admiração. E isso, meus amigos, é tudo, MENOS solidão.

Eu sou a Roberta, irmã da Cris, a moça que gosta de contar histórias. E hoje, quero contar histórias felizes, para que a gente se lembre da Dulce como ela gostaria de ser lembrada: uma mulher alegre, vaidosa e jovial, e não alguém de cara-amarrada. Eu sou a menina que a Dulcinha levava para a fazenda Santa Bárbara, num Fusca cinza, ouvindo músicas italianas e francesas. Todo o meu conhecimento a respeito dessas músicas que a Dulce amava, devo a ela. Foi a Dulcinha que, nessas viagens, me falava da Páscoa, do que ela significava e, o que eu mais adorava, me mostrava as quaresmeiras escondidas nas matas. Até hoje, quando vejo uma quaresmeira explodindo em cores exuberantes, é da Dulce que me lembro. Um dia, voltando da fazenda eu e ela, num sol de rachar a moleira, a Dulcinha parou o Fusca no acostamento da estrada de terra, abriu as portas do carro e tocou “La Barca” a todo volume, me puxando para dançar com ela. Enquanto a gente rodopiava, eu via as quaresmeiras ao fundo. E era feliz. 

A Dulce gostava de ouvir as histórias da Cristiane e, através das aventuras da filha, ela rejuvenescia e ria à vontade. Nunca vi a Dulcinha julgar o comportamento de sua filha, até porque ela confiava na criação que dera à Cris. A Dulcinha gostava de fotos. As últimas que tirou foram da Camila, com cabelo recém-cortado, e do Arthur, sentado à mesa comendo o arroz com carne assada que a Tereza tinha preparado. Sim, porque sempre que ia ao Rio visitar a filha e os netos, a Dulce levava milhares de pães e bolos, leite, ovos, sucos e até arroz com carne assada. Para a Dulcinha, a Cris sempre foi aquela menina que ela gostava de cuidar e, se dependesse da Dulce, ela adotaria o mundo e colocava debaixo de suas asas protetoras. Quando jovem, ela gostava de tomar banhos de sol com sua filha nas praias do Rio; recentemente, era fã de cinema e de um bom almoço em família. E assim foi o seu último aniversário: com a família reunida à mesa, muita risada e diversão, um colar lindo que ela ganhou e um filme que ela adorou assistir. A última foto que tiramos de Dulce é pura poesia: sentada a uma mesa na Tijuca, em meio aos foliões do Carnaval, ela pôs uma máscara veneziana, fez uma pose graciosa e sorriu, ao lado de sua neta. Depois, voltou para a casa da filha comigo e me contou que tinha muito orgulho da Cris, porque ela é uma batalhadora; e do Carlos, que é um homem como poucos; e de Camila, que é uma menina valente; dos meus pais, seus amigos tão leais; e do Arthur, seu neto mais jovem, mais bagunceiro e mais adorável.

À Dulcinha eu devo o melhor presente da minha vida: a reaproximação com a minha irmã. Houve uma viagem para Cabo Frio, em que Cristiane e Dulcinha iriam juntas, mas que, na última hora, a mãe deu para trás, dizendo que estava indisposta. Mas eu acho que a Dulce era muito, mas muito mais esperta do que isso, porque logo disse à Cris: “Chama a Roberta, ela vai com você”. Gosto de acreditar que ela arranjou a desculpa perfeita para nos juntar. E a manobra da Dulce foi tão perfeita e abençoada que, desde essa viagem, em que fomos eu, a Cris e o Arthur, a gente não se desgruda mais. Somos confidentes, rimos e choramos juntas, xingamos às vezes – principalmente quando eu não lavo as louças, molho a pia do banheiro, tomo um banho de mais de 30 minutos e quando o Arthur faz pipi na tampa da privada. Mas, ainda assim, a Cris às vezes me apresenta como sua filha mais velha, que ela vai levar pro Rio para terminar de criar. E, novamente, a Cris é como a Dulce, coração do tamanho do mundo, pura generosidade e capacidade para amar. Muitos de vocês, aqui, têm certeza de que vão se reencontrar com a Dulce. A Cristiane já encontrou a Dulce porque, nela, vivem cada célula da essência de sua mãe, assim como em seus netos. E eu, que conheço a Dulce desde que nasci, já a reencontrei no presente em forma de Cristiane que ela mandou para mim. Agora, quando ela for descer para a terra, vamos fechar os olhos e imaginar que quem partiu está voando e vai encontrar a gente, nas costas de um beija-flor. Mas não se esqueçam: o sobrenome da Dulce é Perini. E Perini, gente, é quase “perene”: e perene é o que é eterno, feito um rio que nunca, mas nunca mesmo, seca.

11 comentários:

  1. Anônimo21.3.11

    É comum que eu veja uma coisa pelo reverso do espelho, é comum que eu compreenda a essência de uma coisa pelo contrário dela, não sei se isso é saudável, certo, só sei que funciona comigo. Essa questão da morte é um tanto distante e estranha pra mim, talvez por algumas das minhas crenças profundas, nunca penso nela, sei que a minha não temo, mas vejo esse pavor com que se olha pra morte como o verdadeiro pavor que se vê a vida, tão apegada, tão matéria, tão fincada na terra, tão necessitada de ser fixa, permanente, de medos tão arraigados. Acho que o conceito que temos de vida se expressa intensamente quando nos vemos cara a cara com a morte, da forma que for, a tal coisa enterrada e carcomida que vemos é assustadoramente a vida, não é a morte que assusta, não é a morte que destitui, é alguma vida que deixa de existir, é o conceito que se tem de vida, é o que se sente por estar vivo no momento em que a morte se apresenta. Mais uma coisa que posso afirmar compartilhar com você, Beta, e, aparentemente, também com seu pai: nada de velórios, nada de enterros. Essa celebração mórbida nunca me pareceu natural, não compreendo como as pessoas podem encarar esses eventos com naturalidade, como elas conseguem se prestar a isso, é uma tortura, é um sofrimento desnecessário, é estragar completamente a vida daquele que lá está, é ter a idéia fixa de que ele não existe mais, é sumir com qualquer rastro de vida, e eu acho que isso é porque há mesmo a crença intrínseca de que a vida está mesmo só nas veias, está só na carne, só no que é fixo, natural como concepção vinda de uma maioria que vive um mundo de medos e apegos, pânico do movimento da vida, que culmina, natural, biologicamente e espiritualmente na morte do corpo. Eu concordo que natural é viver, que natural é desabrochar, mas, claro, eu aqui acredito que a morte é isso também, não acredito nessa imagem medonha de apego que vem no envoltório da morte, nessa coisa de apodrecer, as coisas mais intensas e mais vivas, tudo aquilo que é vida pra mim eu senti em outras partes de mim que nem sei ao certo a localização ou a matéria (ou não) de que são feitas, só sei que não foi no corpo, ou que se essas sensações chegaram ao corpo foram por meio dessas outras partes fora dele, mas dentro de mim, e reconheço a vida nessas partes, e sei que elas não morrem, sei que a vida, portanto, não morre, e nunca fui muito de associar a vida em si ao corpo, mas o corpo como mais uma das expressões da vida, que se transforma quando não mais pode expressá-la, pela sua limitação, mas a vida em sua essência nunca a consegui associar com qualquer limitação. Beta, minha moça da Enseada, aquele mar todo, aquela vida toda, cadê você? Seu coração me pesa, quero poemar a sua vida. Não morra em vida.

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  2. Como sempre, Ivy, meu presente de Yemanjá, de longe você me sente fenecer, ainda que em vida. Como pode isso, amiga minha, de alma nossas? Obrigada pela resposta a esse text-tortura meu. Eu PRECISO VIVER enquanto ainda estiver viva. Me ajuda?

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  3. Anônimo22.3.11

    Sempre. Sempre. Sempre.
    ...and ever, and ever, and ever.

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  4. não é muita vantagem me fazer chorar, visto a manteiga que sou, but you made me cry. mto tocante, sincero, puro, forte.

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  5. Obrigada, Mi. Vindo de você, e sabe disso, é um elogio e tanto.

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  6. A maioria dos textos apenas leio e não comento. E sim, leio todos até o fim... (guerreiro?!) Mas esse não poderia deixar de comentar. Sempre simpatizei com a Dulcinha, não apenas pela pessoa boa e amável que foi, mas pela educação que sempre teve. Gostei dela desde que a conheci. Ela me foi familiar de cara. Essa qualidade específica preencheu uma lacuna importante num período da minha vida em que vivi distante das minhas origens. Foi, certamente, a pessoa mais educada e fina com quem convivi nos anos que morei em Mendes. Nela reconhecia muito de uma certa “essência” da qual estava acostumado e isso me confortou em momentos difíceis. Certamente todos aí (e eu aqui) sentimos muito a falta dela.

    Obs: pela importância da homenagem, achei que alguém que a conhecia de perto e a respeitava deveria se pronunciar.

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  7. Que maravilha você comentar aqui, Lucas, querido. Obrigada. Não sabe o quanto significa para mim que você leia e, sim, comente. É barra. Só quem vale a pena viver morre nesse mundo...
    Beijo imenso.

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  8. Anônimo8.4.11

    Roberta, perdi minha mãe em dezembro do ano passado. É muito difícil mesmo e quem fica tem que, apesar de tudo viver. Amei seu texto... aliás, amo vários textos, não sei porque não pensar em fazer disso publicação formal, com capa e tudo... Dou o maior apoio. Beijos Pri (sua "prima" que vc não conhece pessoalmente ainda

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  9. (...rs). "Ainda". Esse é o tipo de palavra que só completa o sentido no outro, sob o jugo das emoções de quem a escuta ou lê. Para mim, durante muito tempo, "ainda" foi uma palavra prenhe de pessimismo derrotista, relacionado a tudo que "ainda não fiz", "ainda não vi", "ainda não aprendi", "ainda não tentei". Hoje, li "sua prima que você não conhece pessoalmente ainda" e percebi, na sua maneira de posicionar essa palavrinha melindrosa, que você é otimista, positiva, centrada. E esse otimismo é o tipo que se transmite, que a gente vê no outro, admira e aprende. O melhor de tudo é que te respondo três dias depois, quando eu já a conheço. Fico feliz de saber que ainda tem muito mais para conhecer de você.

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