22 de março de 2011

veemência

Há algum tempo, um amigo querido, que me conhece desde que éramos pouca coisa além de estudantes pretensiosos de 18 anos, escreveu-me uma poesia linda, que dizia assim:

"Palimpsesto. É isso que essa menina é. Por duas razões: palimpsesto não é uma palavra fácil, que se vê na boca de qualquer pessoa. É palavra rara. Assim como a Roberta. E como um palimpsesto, na vida e na memória das pessoas que convivem (e conviveram) com ela, mesmo com as camadas e camadas de tinta de tempo e de experiências, as cores da Roberta não se apagam e sempre reaparecem no primeiro plano da nossa vida novamente, somando seus traços inesquecíveis com nossos próprios desenhos. Mulher rara, intensa e inesquecível. Como a própria palavra."

Já escrevi muita coisa para muita gente. É compreensível; escrever é, e sempre foi, a paixão da minha vida. Nada mais natural para mim do que grafar sentimentos e impressões minhas para amigos, familiares, amantes, inimigos e até desconhecidos. Sim, pois já escrevi cartas de amor para namorados que não eram os meus, mas de garotas com quem morei numa república, nos tempos de Faculdade. Puxa, eu adorava aquilo; as moças me contavam suas histórias em ricos detalhes, eu passava horas ouvindo-as e, então, escrevia por elas; tive meus quinze minutos de Cyrano de Bergerac. Algumas cartas obtiveram êxito memorável; uma dessas garotas até se casou com o namorado e, ao que me consta, vivem felizes até hoje. Outras já não deram tão certo; acredito que os namorados desconfiavam que as cartas não poderiam ser de autoria das suas musas. Então, o que era para ser uma reconciliação ou uma noite de amor à la clair de lune acabava em pizza de massa mal assada e insossa. Vá lá; nem todo namorado é cem por cento otário e, confesso, nem sempre uma carta é a solução para um relacionamento à beira do precipício, ainda que o abismo e tudo mais pareça exacerbadamente maior aos 18 anos.

Escrevi muito para muita gente, mas poucos escreveram para mim. E entre esses, a poesia do palimpsesto, que transcrevi acima, é a que mais amo. Mas não é sobre palavras escritas, cartas e poesias que quero falar agora. Preciso mesmo é desabafar. Cyrano de Bergerac hoje quer assoar o seu nariz bulboso e dele expelir um bocado de coriza e pus em forma de mágoa. Resumo da missa: acusaram-me de "veemente". Não; "acusar" é uma palavra veemente demais. Deixe-me refrasear: alguém me disse, muito polidamente, que sou veemente demais. Ouvi, contestei um pouco e calei-me. Engolir sapos faz parte da minha natureza. Os batráquios invadem-me estômago e alma adentro, fico feito uma jibóia a digeri-los por um tempo e... voílá! Vomito uma crônica temperada de reminiscências e elucubrações encruadas.

Tenho um relacionamento sério, sólido e duradouro com o vernáculo. Está aí o sujeito que nunca te abandona, não mija fora do pinico, nem fala o que acha que pode ou o que deve: o dicionário. Claro que lhe contei o ocorrido assim que ficamos a sós, ele e eu; afinal de contas, para quem mais eu poderia delatar minhas derrotas? Então, o vernáculo respondeu-me assim:

veemente
adj.
1. Impetuoso; violento.
2. Forte; enérgico.
3. Intenso, grande.
4. Caloroso, entusiástico.
5. Encarecido; instante; fervoroso.


"Violento" e "encarecido", pensei. Não, não eram esses os vocábulos que casavam com a veemência em questão. Artes marciais, tapas na cara, cusparadas, celeuma, berraria e Tiffany & Co. não fazem parte do meu repertório, de modo que descartei "violento" e "encarecido" da resenha. Quanto às outras definições, bem, estas sim; cada uma delas reflete uma faceta do prisma fragmentado que sou. Então lembrei-me de meu amigo e da poesia que escreveu para mim, há tantos anos. Ele me chamava de "mulher intensa", mas não associava a tal intensidade a qualquer valor pejorativo. Eu também não. Tentei enxergar a mim através dos olhos da pessoa que, consternada, pedia-me para ser menos veemente, ou não tão veemente, não me recordo suas palavras exatas. Aquilo de me "xingar" de veemente foi como puxar meu tapete e me deixar caída com os fundilhos à mostra. Mais: foi educada, paulatina e despudoradamente pedir para mim que eu fosse menos eu, ou que fosse um outro alguém, abduzido pelo conteúdo perfeito e conveniente de um indivíduo ideal na casca da βετα que reconheço quando miro meu rosto no espelho.

Resultado: minha empática tentativa de enxergar a mim através dos olhos dessa pessoa foi de um fracasso veemente. Explico-me. Uma palavra é sempre um signo, dotado de significante (forma) e significado (conteúdo). Quem curte essas idéias é a turma da semiótica, gente como Peirce, Barthes e Umberto Eco, por exemplo. Eu curto semiótica, mas não entendo tanto quanto esse pessoal. Noves fora, para mim a palavra é tudo, dita ou escrita. De uma palavra nasce a metáfora do amor, como pombos pousados no ombro, dizia o Kundera; são as palavras que excitam os sentidos dos amantes e tornam erógenos os seus ouvidos - quando ditas - e os seus olhos - quando escritas Quando ouvidos e olhos são penetrados por palavras, a alma enamora-se e fica grávida de lirismo; são palavras que nos acalentam e adormecem quando ouvimos contos de fada e histórias de ninar; palavras moldam e movem mentes, gerações, universos. E, acima de tudo, palavras são pétalas de uma rosa de veludo mas, também e principalmente, um punhal mordaz, que lhe rouba a vitalidade sorrateiramente, sem que ao menos se dê conta disso. 

É na hora das pétalas e do punhal que entra a semiótica. Quando ouço ou leio o signo "veemente", é à assertividade que o associo; ao poder de decisão, às cores fortes dos quadros de Bartolomé Esteban Murillo, que amo, à parcialidade, para mim fundamental para qualquer um que esteja em luta com a vida e deseje vencer num jogo limpo, sem a dualidade etérea da diplomacia. Por falar em dualidade, vejamos o que o meu amante vernáculo diz a respeito do antônimo de veemente:

veemente
ant.
1. afervoroso.
2. calmo.
3. paciente.
4. tranqüilo.

Agora, sim. Meu velho companheiro dicionário lembrou-me que às vezes se define as palavras - e por conseguinte o conteúdo delas - pela não-definição, pelo oposto. Se palavras são definidas assim, a própria identidade também o é. Explico-me. Quando somos jovens, pré-pubescentes inundados de espinhas na cara e dúvidas na alma, é comum que adultos centrados e com a vida pronta nos perguntem o que vamos fazer de nossas vidas, profissionalmente. Atire a primeira pedra quem nunca respondeu - ou ao menos pensou - da seguinte maneira: "Bem, ainda não decidi o que quero fazer da minha vida, mas tenho certeza do que NÃO quero". A definição pela não-definição acontece o tempo todo; parece fazer parte da maneira como delimitamos nossos contornos e afirmamos quem somos, principalmente quando a dúvida, as indecisões e a dicotomia imperam: que cor vai usar hoje? Tudo, menos vermelho; para aonde gostaria de viajar nessas férias? Praia ou montanha, menos ficar na cidade; já escolheu a entrada? Estou em dúvida, mas definitivamente não tolero quibe frito.

Então, pela não-definição de veemente, ou melhor, pelo conteúdo oposto que ela representa, consegui entender os significados aos quais a pessoa que não gosta da minha veemência associa a mesma. Se sou veemente, não posso ser calma, paciente, afervorosa (fervorosas são as beatas e carpideiras) e muito menos tranqüila. Entendi a semântica - relativa ao conteúdo, ao significado - da palavra, consegui formar um laço de empatia com a pessoa, mas, nesse processo, percebi que o conteúdo que recheia minha forma não é o conteúdo que a pessoa em questão deseja ver, exalar, experimentar, vivenciar e adotar para si. É a velha história de Eco e Narciso. Puxa, como esse mito é primal... Digressões muitas sobre o mesmo aqui, nesse blog: http://escaloalfabeticas.blogspot.com/2011/03/eco-e-narciso-da-obsessao.html

Ninguém muda ninguém, a não ser que deseje se modificar por si mesmo, e não pelo ou para o outro. E mudança imputada corresponde à identidade amputada. Isso me faz lembrar de uma frase que uma outra amiga gosta de dizer, para falar de si mesma: atraímos os nossos iguais. Não poderia concordar mais com ela; essa lenga-lenga de "os opostos de atraem" só funciona em eletromagnetismo. Pode-se até modificar a forma de alguém por um tempo, para agradar ao outro, para parecer menos "oposto", mas, invariavelmente, o conteúdo vem à tona. Ocorre que depois de suprimido o conteúdo e soterrada a essência de um indivíduo, o resultado é o mesmo do efeito rebote com medicamentos: os "sintomas" tratados no início reaparecem com maior intensidade e predominância. São os tentáculos que você tentara cortar em vão, envolvendo o ser por inteiro, como a lava incandescente e inesperada de um vulcão que se pensava inativo.

Li e reli a poesia antiga de meu amigo, em que ele me compara a um palimpsesto. Palavras do vernáculo:

palimpsesto
s.m. Manuscrito em pergaminho que, após ser raspado e polido, é novamente aproveitado para a escrita de outros textos. Prática usual na Idade Média. Modernamente, a técnica tem permitido restaurar caracteres primitivos.

Amei a poesia de meu amigo por muitas razões. Na época em que me escreveu, eu vivia derrotas subseqüentes e já nem me lembrava mais de quem era; tristeza, decepção e solidão têm o poder de não apenas fazer-nos esquecer quem somos, mas nos transformar em sombras incognoscíveis aos outros e a nós mesmos. As palavras do meu amigo me lembraram de quem eu já havia sido, de quem eu poderia voltar a ser. Além do mais, em poucas linhas, ele resumiu exatamente quem sou: um manuscrito que é raspado, polido e reutilizado à exaustão, mas que, ainda assim, mostra suas cores primárias, seus traços essenciais. Mais do que isso, um manuscrito que se soma ao do outro e não se sobressai, nem se apaga. Para esse amigo, minhas cores fortes, a intensidade do meu eu e meus traços sublinhados são o que há de melhor em mim. Ele jamais teve a menor intenção de me mudar, nem eu a ele. E olhe que somos opostos em tudo: nos gostos, nas manias, na forma de viver. Sou veemente, sim. Um bicho manso, meio desgarrado do bando, dócil, mas um pouco arisco. Raro e inesquecível, Hudson? Lisonja sua, meu amigo. Mas veementemente intensa, sem dúvida.

2 comentários:

  1. Pri Rohem12.4.11

    Cada um que leio penso: esse é o melhor (até agora), aí leio outro e gosto ainda mais... TO amando essa viagem no Expresso!!!!

    ResponderExcluir
  2. (...rs). Quando você chegar nos contos eróticos (que, na verdade, nem são tão eróticos assim; não escrevo tr*...ar uma única vez!), vai ver que a viagem não pára ;-) Beijilhões, Pri!

    ResponderExcluir