30 de outubro de 2010

inimigos

"Belerofonte e Pégasus Atacam Quimera" Rubens
dois inimigos implacáveis,
titãs cruéis e incontroláveis
moram dentro de mim
e tanto um, quanto o outro
lutam entre si
e comigo
para decidir na força
quem vai ser o imperador de mim

não sei ao certo qual deles
quer meu bem
e qual quer meu mal
por vezes penso que,
inimigos mortais os dois,
nenhum deles deseja me ferir de fato
embora, num sem fim de vezes
eu saia coberta de chagas de suas batalhas selvagens

o que me assombra e revolta
é que esses dois rivais
habitam meu corpo, minha mente e minha alma incauta
não pagam aluguel algum por isso
ao contrário, apenas exigem munição de mim
e ainda pretendem dominar minhas ações
eles esquecem que, entre um e outro
estou eu. Eu apenas.

seus duelos e embates
fazem um barulho retumbante
que ressoa em meus ouvidos
e, por pouco, não me põem para fora
do meu próprio corpo
despejada, solitária e nua,
ponho-me a pairar, etérea e muda, sobre suas querelas
à revelia dos que são mais fortes do que eu

ah, sim, isso é uma questão de força
nesse caso, de fraqueza minha
porque à medida que os dois combatentes
ambos autoritários e pretenciosos,
ensandecidos para me fazer de fantoche de um deles,
vão abrindo campos de batalha dentro de mim
dilacerando-me a carne frágil e carente,
meus contornos vão se volatilizando, até sumir...

e se eu sumir, desaparecer ou virar éter?
onde esses dois oponentes
que se odeiam, mas, sem perceber
completam-se um ao outro
vão morar...?
eles deveriam conceder uma trégua
se não a ambos
pelo menos a mim

porque, do contrário,
correm o sério risco de ver sua casa
olhar para uma Lua Cheia no céu
e querer fazer morada por lá
e, para a Lua, nem um nem outro
deseja morar
porque, de lá, perderiam de vista o objeto de seu amor
que é também o meu, o mesmo

na verdade, não somos tão ensandecidos assim
moramos juntos, eu e os dois inimigos
mas somos uma trindade inseparável
que compartilha os mesmos desejos e quereres
sem eles, sou éter volúvel
sem contornos que me definam e falem por mim
sem mim, eles não poderiam sobreviver um dia sequer, pobres infelizes
porque, sem mais delongas, são parte do meu eu

então, somos obrigados a viver juntos
numa guerra sem fim, pontilhada de intolerância juvenil
eu luto para ter as rédeas de minha identidade em mãos
para ser eu, e não um deles, o imperador de mim
para que eu possa decidir que caminho tomar
sem que, em minhas entranhas, travem-se combates insanos
e eu sobreviva, sem feridas mortais, das rixas intransigentes
entre o meu coração e a minha razão. Meus doces, incompatíveis inimigos.


coração, "razão raiz", coração, "razão preto no branco"...


inércia

s.f. Estado do que é inerte: a inércia dos corpos inorgânicos.
Fig. Falta de ação; preguiça, indolência, torpor.
Falta de energia moral ou intelectual.
Física. Propriedade que têm os corpos de persistir no estado de repouso (ou de movimento) enquanto não intervém uma força que altere esse estado.
Medicina. Inércia uterina, contração insuficiente do útero durante ou após o parto.

Às vezes eu gosto de consultar o dicionário. Se a palavra for desconhecida, o vernáculo é obrigatório, não tem jeito. Mas, no caso em questão, quando uma palavra me vem assim, em forma de insight, mesmo que eu conheça o significado pleno dela, gosto de ler as definições que um dicionário oferece. Talvez seja só mais uma de minhas idiossincrasias - essa palavra difícil e linda que se pode usar como atenuante para "maluquices", mas quando vejo as definições de uma palavra que, de fato, conheço, tenho a mesma sensação de alguém que ficou fora de casa por um tempo.  Na volta, o "viajante" sabe que aquela é sua casa, a mesma casa, mas o seu olhar sobre ela mudou, já não é mais o mesmo olhar. Então, é como se a casa também tivesse se modificado.

Há cerca de dois meses algo mudou dentro de mim. Vi-me tomada de assalto por uma vontade de sair, de andar e de correr, como a buscar por algo precioso que deixei para trás, ou encontrar um pedaço de mim mesma que me falta e me impede de completar o quebra-cabeças da minha vida. Mas, como dizia o velho e bigodudo Nietzche, tudo na vida é um eterno retorno, portanto, de idas e andanças e corridas, há de se voltar ao ponto de origem um dia, nem que seja para recarregar as baterias da alma. Foi nesse nó que percebi a tal mudança em mim. De volta, não consegui reintegrar-me às origens e ao baile que se dançava ali e, da correria e euforia, mergulhei numa lentidão entorpecida.

Então a palavra "inércia" atingiu-me a consciência. Mas, veja bem, no sentido figurativo que ela possui: "Falta de ação; preguiça, indolência, torpor. Falta de energia moral ou intelectual". Pensei na conotação popular de "inerte" e foi assim que me senti: como de mãos atadas, presa a algo que me impedia de seguir em frente, pura e simplesmente. E não há nada mais contraproducente do que estar inerte. Você passa a viver e comer em horários alternativos, arrasta-se pelo mundo com um vagar assombroso, quer se enconder da vida e das pessoas, enfim, transforma-se numa velha árvore retorcida habitada por um, no máximo dois corvos agourentos.

Entretanto, lembrei-me do meu velho amigo dicionário. E, com ele, das aulas de Física com o professor Joel, que há milênios ensina a 1ª Lei de Newton, que é o primeiro princípio da Dinâmica dos Corpos e que, ao final e ao cabo, tem tudo a ver com a inércia. Segundo o Princípio da Inércia, que vem a ser a 1ª Lei de Newton, todo e qualquer corpo dotado de massa tende a permanecer no estado em que se encontra, parado ou em movimento, até que uma força externa intervenha e altere esse estado. A inércia refere-se, portanto, à resistência que um corpo oferece à alteração do seu estado de repouso ou de movimento. Assim, quanto maior a massa do corpo, mais resistência ele vai oferecer à força externa, ou seja, maior a inércia. E, por outro lado, quanto menor a massa, menor a inércia.

Por isso consultar um dicionário ou, nesse caso, um antigo livro de Física, vale sempre à pena. Meu insight com a palavra inércia atingiu-me de maneira tão certeira que eu tive que pesquisar mais sobre isso e, dessa forma, descobrir mais sobre a mudança que se instaurou em mim há uns dois meses.  Inércia não é estar inerte. Basicamente, qualquer corpo, eu, você, um rato, um carro, uma cadeira, um pássaro, enfim, qualquer corpo deseja terrivelmente continuar em seu estado inicial, seja ele de repouso ou em movimento. Por isso, quando você está num carro, por exemplo, e freia, seu corpo é jogado para frente, porque ele tende a permanecer como estava, ou seja, em movimento. Por outro lado, se você estiver pacificamente montado em seu cavalo, paradinho sob a sombra fresca de uma mangueira, e esse cavalo, um garanhão inteiro, vê uma égua a cem metros de distância e dispara à galope, você é impulsionado para trás, porque tende a ficar em repouso. A inércia é exatamente essa resistência que os corpos têm de mudar de estado. O que eles querem é permanacer em movimento ou paradinhos, eternamente. Mas sempre há uma força externa para interferir no estado dos corpos. E, de uma forma ou de outra, quebra-se a inércia.

Matemática e Física são as coisas mais belas do Universo, principalmente quando associadas à Filosofia. O problema é que, na grande maioria das vezes, um físico não se bica com Platão, assim como um estudante de Filosofia mal sabe somar sem usar os dedos da mão. Esta é uma realidade lastimável. Porque se ambos, físicos e filósofos, andassem de mãos dadas, o homem lucraria muito mais com o auto-conhecimento e o conhecimento sobre o mundo adquiridos através dessa parceria.

Pensando em cada um de nós como um corpo isolado no espaço, imagine o número de forças externas que atuam sobre nós o tempo todo (chega de Física. Não vou falar dos ínumeros tipos de força envolvidos na Mecânica. Agora, quero entrar um pouco no mundo imaterial da consciência e da subconsciência). O problema é que somos corpos dotados de massa, sim, mas também de pensamentos, sentimentos, sonhos, desejos, planos, fraquezas, virtudes e mazelas. E a tal inércia, no mundo impalpável de nossas mentes, ganha outro nome: conformidade. Exemplos banais do dia a dia, mas que ilustram bem essa questão: quanto mais você come, mais tende a comer. Quanto menos come, menos tende a comer. Quanto mais sexo você faz, mais sexo tende a fazer, quanto menos sexo faz, menos sexo vai continuar fazendo. Se você trabalha num ritmo de 12 horas diárias, tende a continuar trabalhando assim, mas se está vendo televisão a tarde inteira há meses, dificilmente vai sair de casa para trabalhar. É a mesma coisa com atividade física: quanto mais você anda ou corre na esteira, mais facilidade terá em continuar nesse estado. E, se for diminuindo o ritmo, a tendência é que você vá, inevitavelmente, para um estado de sedentarismo. Isso é inércia. Ou, em palavras de filósofo, conformidade com o estado em que se vive. Você pode também, nesse universo, denominar a inércia de hábito ou, outro sinônimo, costume.

A maior parte de nós se constitui de seres, atolados ou em movimento, que desejam permanecer exatamente assim, sem interferências externas da vida. Afinal de contas, uma vez em estado confortável e habituados a ele, a ideia de mudança não chega a ser benvinda. Mas o mundo é todo movimento, caos e mudança constante, e age sobre nós inexoravelmente, quer que planejemos uma mudança de estado, ou não. Se a força que atua sobre nós for resultado de um plano, de um querer nosso, saímos do estado de inércia e conformismo, ou hábito com mais tranqüilidade, sem maiores solavancos e pouca turbulência. Mas, se a força externa vem no susto, e na maioria das vezes é assim que a gente desperta da inércia, vamos para frente ou para trás aos trancos e barrancos, caindo do cavalo e batendo de cara no pára-brisas do carro.

Mas somos, também, corpos dotados de consciência, adaptabilidade e livre-arbítrio. E, aqui, entra o divisor de águas da inércia, do conformismo, do costume e dos hábitos. Atingidos por uma força externa, dividimo-nos em dois grupos diametralmente opostos de seres humanos na forma de lidar com tal força: o primeiro, mais adaptável e maleável às mudanças da vida, entra em novo estado, seja de movimento ou repouso, sem muita filosofia, nem discussão. Simplesmente continua sua vida. O segundo grupo, o dos refratários, incorfomados e questionadores, custa a entrar num ritmo novo e diferente, demora a aprender as novas regras do jogo, não dança confome a música de uma nova banda, enfim, fica "inerte" porque não consegue seguir em frente diante dessa força externa que chacoalhou sua vida. Quando pesados em uma balança, aqueles do primeiro grupo são mais fortes, práticos e ágeis. Vencem a corrida do tempo. Os do segundo grupo ficam para trás, como se os faróis de seus carros iluminassem o que ficou, e não o que está por vir. Esses não apenas perdem a corrida, como sofrem mais, perdem mais tempo, mais oportunidades e vão sufocando lentamente, até entrarem no esquema que o mundo lhes impõe.
    

Acredito que cada um de nós saiba a qual grupo pertence. Eu, infelizmente, faço parte do time dos retardatários. Sempre fiz, desde que comecei a dar meus próprios passos. A mudança, ou melhor, a força externa que me faz sair de meu estado de inércia, é algo que me assusta, me faz empacar diante da necessidade de readaptar meu universo à nova ordem. Na vida prática, ser assim me custa caro. Na emocional, me vale um mapa de cicatrizes pela alma. Depois de pensar muito a partir de uma palavrinha que me veio à mente e, principalmente, depois de ter que organizar minhas ideias para escrever essa crônica, as razões pelas quais me permiti ficar "inerte" diante de forças externas, estão começando a ficar mais claras para mim. Os últimos cinco anos da minha vida foram, em suma, mudança após mudança, sem que eu tivesse ao menos tempo para respirar entre uma quebra de inércia e outra. Bem, talvez eu tivesse tido esse tempo para respirar, para me adaptar, mas, como sou do time dos babacas que só pegam no tranco, fica para mim agora a impressão de que não houve tempo para respirar. Sufoquei.

Não dá para explicitar, nesse espaço de leitura, que forças me fizeram mover, andar e correr e, depois, voltar a um estado de latência. Se não, isso seria uma pequena auto-biografia, ou um diário. E aposto meus cinco dedos da mão direita que ninguém estaria interessado numa auto-biografia desta que lhes escreve. Eu não sei, ao certo, para que serve a inércia, fisicamente falando. Não sei porque os corpos tendem a permanecer no estado em que estão, oferecendo resistência à mudança. Mas deve haver uma razão lógica para a existência da inércia. As coisas no universo das ciências sempre têm seu lugar e uma explicação envolvendo causa e efeito. As coisas do coração, bem, essas nem explicação têm...

O que eu queria, mesmo, era uma fórmula, uma equação que eu pudesse estudar, compreender, decorar e aplicar à minha vida, para poder passar para o time da galera que não fica patinando quando qualquer força externa os retira de seu estado inicial de vida, consciência, permanência ou movimento. A vida mais retira de nós do que tem a nos ofertar, o mundo já é inclemente demais para que alguém leve mais de cinco minutos para perceber que o cenário mudou. Eu queria mesmo é aprender a Lei do Desapego. Mas, essa, nenhum físico descobriu ainda.     

29 de outubro de 2010

51ª postagem


Será?
Nada como a solidão, uma pitada de tristeza
e o ócio criativo.
Será que devo tomar uma Caninha
pra comemorar?
Não.
Melhor ficar com a Coca Zero.
Menos chance de errar
e passar um mal dos diabos.

coisas que deveríamos fazer...

...antes de bater as botas. É sério, embora essa postagem esteja marcada como "bobagens". Você já deve ter lido um milhão de listas desse tipo, mas essa vai ser diferente. Não vai haver pára-quedas, Cataratas do Niagara nem nada que envolva uma conta bancária do tipo prime. Nessa lista, você vai encontrar pequenos detalhes, desses que a gente acaba não vendo por causa da pressa da vida, da prisão das identidades ou porque, simplesmente, não estava prestando atenção. Ou ouvindo atentamente. Antes da bater as botas, proponho projetos que nos aproximem de quem somos, do que fomos um dia e de quem nem temos ideia do que podemos ser. Então, mãos à obra.

1. Fazer as pazes com prováveis, possíveis ou reais inimigos.
Porque cultivar inimizades está totalmente fora de moda, desde a queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. Bom mesmo é encher o peito de uma leveza sem fim, e se recusar a beber do veneno do rancor e da amargura. Com um sorriso sincero, um bom vinho tinto, um forte aperto de mãos e uma visita agendada, ninguém precisa bater as botas deixando inimigos para trás. É ruim para quem vai e, pode crer, pior para quem fica.

2. Falar a verdade a respeito do que se pensa.
Nenhuma verdade, por mais dolorosa que seja, fere mais do que uma mentira bem contada ou do que "panos quentes" dos quais, muitas vezes, a gente se utiliza para empurrar mais um dia com a barriga convenientemente. Dizer a verdade não machuca. Só reforça laços e solidifica a imagem que temos de nós mesmos e que os outros têm de nós. A verdade é diretamente proporcional à autenticidade.

3. Fazer uma viagem e olhar, realmente enxergar a paisagem.
Você não precisa ir para Paris para ter a sensação de que viu e vivenciou coisas diferentes e incríveis. O segredo está na maneira de olhar. Um trajeto que você faz todos os dias, de sol a sol, pode se tornar insuportavelmente tedioso. É compreensível. Mas se, nesse trajeto, você tirar o tapa-olho, olhar para os lados, para baixo e para cima, vai descobrir uma pedra diferente no caminho, uma flor que acabara de brotar, uma galera animada construindo um prédio novo, velhinhas alegres a fofocar, um maluco-beleza que se senta sempre no mesmo banco e que, um dia, pode se tornar um amigo seu, num momento de muita solidão. A vida muda o tempo todo, as pessoas também e, da mesma forma, os lugares. Sempre vai haver algo diferente para ver se você quiser enxergar. Na dúvida, esqueça propositalmente seu GPS em casa, vá às cegas e, quando (ou se) você se perder, peça informações. Na pior (ou melhor?) das hipóteses, você terá vivido uma boa aventura.

4. Cantar num karaokê.
Não precisa ser um karaokê de um bar da moda, que vai "rapar" sua carteira. Pode ser aquele karaokê de domingo, com a família reunida para um churrasco. E se você for desafinado, a experiência vale ainda mais. Não há nada mais libertador do que pagar mico em público, porque você optou por isso. No final, a gente aprende que essa coisa de "pagar mico" é invenção besta dos yuppies que, hoje, são velhinhos comportados e que fazem os netos passar por grandes vergonhas. Cá para nós, "pagar mico" é não se aventurar a pagar um mico.

 5. Trocar uma lista de defeitos e qualidades com o seu parceiro.
A coisa funciona assim: você e seu parceiro marcam um dia para escrever a tal lista. Mas, preste atenção, tem que ser no mesmo dia. Então, em segredo, vocês escrevem o que não suportam no outro e o que ainda admiram. Depois, marcam um dia para trocar suas listas. Não é para discutir as listas, okay? A ideia aqui, é de auto-descoberta, ou melhor, uma forma de constatar a quantas anda o seu relacionamento. Se, em posse da lista que o seu parceiro escreveu, você vê que o que ele não suporta em você é, de fato, o seu jeito natural de ser, já sabe que deve começar a pensar que alguma coisa está errada. Porque, se há uma verdade absoluta nessa vida, é que ninguém muda ninguém. O que a gente faz, muitas vezes, é se anular para "caber" na lista do outro. Agora, mudar para atender às expectativas, isso já é outra história. Se você não está almaço da solidão, vale à pena trocar essa lista com o seu parceiro. Mas, já aviso de antemão, tem que ter muita coragem para isso. Porque os resultados podem ser decepcionantes.

6. Entrar numa festa de penetra.
Esse tópico é auto-explicativo. Eu jamais teria coragem de partir dessa para uma melhor sem entrar de penetra num churrasco, numa festa de aniversário, num casamento, o que seja. O penetra, comprovadamente, tem 70% mais chances de fazer amigos do que um convidado oficial. Bacana demais, sô!

7. Escrever uma carta de amor.
Para os seus pais, seu filho, seu parceiro, um colega de trabalho (para o patrão fica mais difícil, admito), não importa. Pode ser um bilhete de amor, três linhas, não faz diferença. Mas as palavras escritas têm um poder incrível, ainda maior do que aquelas que a gente fala e, às vezes, deixa de falar. Então, escreva. Vai ser ótimo para o remetente e inesquecível para o destinatário.

8. Ler um livro da primeira à última página.
Não precisa ser James Joyce, nem Clarice Lispector. A parada aqui é começar uma coisa e ir até o final, mesmo que você escolha uma revistinha da Mônica. É um hábito. E, da leitura, esse hábito se estende para tudo na vida: comece, caminhe, termine, recomece. 

9. Ler em voz alta para alguém.
Esse tópico complementa o de cima. Muita gente não sabe ler, nem nunca pegou um livro nas mãos. Então, leia para essa pessoa. É recompensador, lírico, inesquecível. Para quem lê e para quem ouve a história.

10. Visitar um asilo no Natal ou em qualquer feriado besta.
Natal em família, muitas vezes, pode ser uma obrigação, uma formalidade social, assim como um monte de ocasiões que os seres-humanos inventam para se agregar. Mas, para a galera do asilo, esquecida por suas próprias famílias, Natal é uma oportunidade a mais para lembrá-los do estorvo que representam para as suas famílias práticas e horripilantes. Então, se estiver de bobeira num feriado, sem nada para fazer, ou se não quiser encarar a sogrona e o cunhado beberrão no Natal, visite um asilo. Nada substiui o sorriso agradecido de um idoso abandonado.

11. Doar sangue.
Auto-explicativo. Só não vale para portadores de hepatite ou outras doenças contagiosas. Para os demais, em menos de duas horas você doa o que tem de mais precioso em seu corpo, ajuda a salvar pelo menos uma vida e ainda ganha lanchinho depois. E volta para casa mais leve.

12. Ir a um museu ou a uma Casa de Cultura (e assinar o livro de visitantes).
Qualquer museu. Não precisa viajar mil quilômetros para ir em São Paulo. Toda cidade tem uma Casa de Cultura. Se a sua não tiver, a mais próxima terá. E valorizar o passado e as pessoas que preservam esse passado é uma forma de mostrar que você está presente.

13. Mandar alguém tomar no cu e/ou ir à merda.
Ou você pensava que essa lista era só de coisas boazinhas e altruístas? Morrer sem mandar alguém, seu melhor amigo que seja, tomar no cu ou ir à merda é inaceitável.

14. Furtar um artigo antigo de uma casa ou fazenda abandonada.
Não estou fazendo apologia à invasão de terras, pelo contrário. Mas, em casas e fazendas abandonadas, você encontra relíquias, talvez algo por que você sempre procurou e nunca encontrou. Vai ver, é no abandono que a coisa está esperando por você.

15. Ir a um sebo.
Não precisa comprar livro nenhum, se não quiser. Mas todo sebo é mágico, pode crer. Entre, dê uma boa olhada nas prateleiras que aquele velhinho vem arrumando há anos, bata um papo com ele e inspire profundamente. Sinta o cheiro dos livros antigos. Livros contam histórias, mesmo que você não os leia.

16. Tirar uma foto montado em algum monumento ridículo.
Auto-explicativo. Diversão garantida na hora e para a posteridade. Mas o monumento tem que ser ridículo. Não vale querer trepar no Pirulito da Praça Sete.

17. Passar uma noite inteira, non-stop, transando.
Super auto-explicativo. Mas tem que ser das nove da noite até as seis da manhã do outro dia. Vai dizer que você tem coragem de bater as botas sem fazer uma loucura gostosa e inofensiva como essa? Ah, claro. De sábado para domingo, para ninguém matar serviço no dia seguinte.

18. Transar no mar, em noite de Lua Cheia.
Não. Delete esse item, por favor. A coisa tá descambando para fantasias pessoais da autora. Foi mal.

18. Levar o seu filho ao lugar que você mais ama no mundo.
Ele merece isso. E você também. E passem horas por lá, explorando, descobrindo coisas novas, desenterrando antigos tesouros...

19. Ter uma conversa de homem para homem com a sua mulher, e uma de mulher para mulher com o seu marido.
Todo homem tem um pouco de mulher na alma, e toda mulher guarda um homem em seu coração. Conversando assim, vocês se entendem como jamais poderiam de outra forma.

20. Fazer uma lista como essa.
Assim, a gente vai trocando de listas, distribuindo para quem tiver a mente e o coração abertos para ler e tentar completar as "tarefas". Nessa troca, a gente aprende mais sobre o universo do outro e, principalmente, sobre si mesmo. E, se tiver coragem, faz muita coisa bacana, saudável e que dá sentido à vida antes de dizer adeus à ela.

28 de outubro de 2010

amores platônicos


Platão
Quem não teve ao menos um amor platônico na vida, não é mesmo? Pois eu tive alguns e, queixos caídos à vontade, ainda tenho um, bem guardado em meu peito. A palavra "platônica" vem, logicamente, do filósofo Platão que, na obra "O Banquete", dialoga com outros filósofos de sua época sobre vários temas, dentre eles, o amor. Assim, "amor platônico" é uma expressão usada para designar um amor ideal, alheio a interesses individuais. No sentido popular, é explicado como um amor impossível de se realizar, um amor perfeito, ideal, puro e casto.

Mas com filosofia não se brinca. Ainda mais em se falando de Platão, cuja obra dá uma coça em quem se atreve a ler. Porque a noção que temos de "amor platônico" não passa de uma má interpretação da filosofia de Platão, que vincula o atributo "platônico" ao sentido de algo existente apenas no plano das ideias. Porque "ideia", em Platão, não é uma cogitação da razão ou da fantasia humana. É a realidade essencial. O mundo da matéria seria apenas uma sombra que lembraria a luz da verdade essencial da ideia. Sacou? Jóia. Vamos tentar de outra forma.

A expressão "amor platônico", da maneira como a empregamos, é uma interpretação equivocada do conceito de amor na filosofia de Platão. Amor, para Platão, é falta e ausência. Ou seja, o amante busca no amado a tal ideia, a verdade essencial, que não possui. Nisso, supre a falta e se torna pleno, de modo dialético e recíproco. Cá pra nós, o Platão devia filosofar muito e transar pouquíssimo, né não? Ele ainda distinguiu três "modelos", por assim dizer, de amor: o terreno, que é o amor dos corpos; o da alma, que é o amor celestial e espiritual, que leva o homem ao conhecimento e o produz; e o terceiro, que seria a mistura dos outros dois, ou seja, o "amor platônico" e ideal, porque nasce da verdade essencial. Em todo caso o amor, para Platão, é o desejo por algo que não se possui. 

Mas Platão também passava horas do seu dia pensando no que seria a "paixão". Para ele, a paixão seria o desejo do que não se tem, claro, mas voltado exclusivamente para o mundo das sombras, o mundo irreal, totalmente o oposto da verdade essencial que ilumina. Na paixão, abandona-se a busca pela realidade essencial. E tem mais: Platão não diferenciava amor e paixão pelo prisma do sexo. Tanto o amor quanto a paixão seriam, para ele, permedos pelo sexo. A única diferença é que o amor platônico é ideal, e a paixão, uma sombra, a não-verdade de si mesmo.

A gente fala em paixões e amores platônicos como se eles fossem impossíveis de acontecer e Platão, lá em seu túmulo, deve se revirar convulsivamente de raiva por ter investido tanto tempo pensando em amor, e não fazendo amor, para agora uma legião de leigos utilizarem o seu conceito de maneira totalmente equivocada. É compreensível. Mas, Platão, leva a mal não, o pessoal daqui, amantes e não amantes do século XXI, não pensam no plano das ideias, não buscam a verdade essencial, não lêem filosofia. A gente quer mesmo é amar e ser amado. Ponto. Apaixonar-se e ser correspondido. Fecha parênteses. E, para citar o maior filósofo, poeta, boêmio, "pegador" e, ainda por cima, brasileiro, a gente quer tudo isso eternamente, pelo menos enquanto durar.

Eu, que gasto horas do meu dia com filosofia de botequim, embora não precise necessariamente ir ao boteco para filosofar, gosto mesmo é de usar a expressão "amor platônico" como todos os demais mortais a usam: como algo inatingível (mas, agora, a gente já sabe que não é isso. Amor platônico não só é possível, como ideal). Mas o bicho-humano tem mesmo essa mania de acumular um martiriozinho aqui, um sofrimentozinho ali, uma dorzinha de cotovelo "platônica" acolá... Então, jogue a primeira pedra quem nunca teve um amor platônico na vida. Um amorzinho só que fosse.

Meu primeiro amor platônico foi o Superman, ou o Christopher Reeve, ou o Christopher Reeve voando com aquela capa vermelha, não sei. Aos sete anos, eu tinha certeza absoluta de que me casaria com o Clark Kent. E, quando via os filmes repetidamente, à exautão, morria de ciúme e ódio da Lois Lane, aquela mulherzinha feia e que esnobava o coitado do Clark.

Aí, eu cresci mais um pouquinho e cultivei meu segundo amor platônico. Mas, sobre essa paixonite platônica, não dá para comentar, muito menos postar num blog. Tudo o que eu posso dizer é que não era super herói, nem ator americano, existia de verdade, alguém que eu via de vez em quando em carne e osso e quase morria de paixão juvenil. Bem, como eu sou humana, demasiado humana, e bem cabeça-dura, para não falar romântica e otimista mesmo, ainda nutro esperanças por essa paixão platônica. Principalmente agora, depois que reli meus livros de Filosofia e descobri que, de impossível, o amor platônico não tem nada.


Então, veio minha terceira paixão platônica, Francis Albert Sinatra. Bem, essa paixão era impossível mesmo, porque quando o Frank entrou na minha vida, eu devia contar uns seis, no máximo sete anos, e ele já estava bem caidinho em comparação com o Clark. Mas o meu negócio com o Frank não era físico, eu jamais pensei em ser a Sra. Sinatra. O lance era mesmo escutar aquele que foi consagrado como a voz do século XX, e ver aqueles velhos olhos azuis, cheios de bondade e carisma. Assim entrou para a história Francis Albert: "The Voice" e "The ol'blue eyes". Quando morreu, tudo o que eu conseguia pensar é que ele tinha vindo ao Rio de Janeiro, em dois de fevereiro de 1980, cantou para uma multidão de 150 mil pessoas no Maracanã e meu pai NÃO foi ao show. Eu não podia ter ido mesmo, tinha só dois anos e nem sabia o que era música. Mas Sinatra no Rio e nenhum membro da minha família para assistir? Inadmissível.

Minha última paixão platônica, que me conquistou também pelo viés da arte e da música, está vivo, tem cinqüenta e quatro anos, nasceu em 15 de março no Grajaú, aqui pertinho, ganhou o 1° lugar no Festival de Música Brasileira em 1980, tem todos os dentes tortos e amarelados, não sabe dirigir, nem digitar em um computador, fuma charutos fedorentos, usa sempre os mesmos jeans escuros e as camisas pretas, tem um cabelo e uma barba heréticas, mora num apartamento no Leblon que ele mesmo pintou com cores e motivos psicodélicos, enfim, é um hippie sujo cujas músicas eu amo e ouço desde os 12 anos. Uma vez alguém me disse que metade dos meus danos psíquicos se deve ao fato de eu ter sido "exposta" ao Montenegro tão cedo e ainda me expor até hoje. Puxa, aquilo me magoou de verdade. O cara não é material atômico nem kriptonita!

Minha prima me perguntou, uma vez, se eu passaria uma noite com o Oswaldo. E perguntou a sério. Eu quase desmaiei de tanto rir da pergunta dela. Mas ela insistiu: "E então? Você passaria uma noite com ele?". Se uma prima que você ama muito te faz uma pergunta, você ri, e ela repete a pergunta, é porque quer realmente saber a resposta, mesmo que você considere o tema uma grande e impossível bobagem. Eu fiquei em silêncio por uns segundos, para criar uma aura de segredo e mistério, fingi estar ponderando aquela possibilidade esdrúxula e, enquanto via a curiosidade da minha prima aumentar, ia pensando numa resposta boa para ela. Então, deixei minha verve piadista vir à tona e disse, com voz insinuante: "Mas é claro que eu passaria uma noite com ele. Uma noite in-tei-ra". Minha prima quase deixou o prato que estivera enxaguando cair. Então, terminei a resposta, desta vez, falando pra valer: "Uma noite inteira, ele no violão, de jeans e camiseta preta, e eu, lá no fundinho da sala, sozinha e meio melancólica, ouvindo as músicas dele e sonhando com a minha outra, verdadeira, real e possível paixão platônica".    

cinco alternativas

"Charlie Brown", Charles Schultz
um blogueiro se dá conta, pelo número de fiéis escudeiros, digo, seguidores
e pela "inquantidade" de comentários
que recebe em cada postagem que:

a) não tem fiéis escudeiros, digo, seguidores;
b) não sabe promover seu blog adequadamente;
c) seu nível de popularidade equivale a zero;
d) é um blogueiro quixotesco;
e) seus textos são muuuito chatos.

aqui, não vale "nenhuma das alternativas anteriores"
mas, o lado bom disso
é que blogueiro nenhum nesse planeta
nem em qualquer outro
escreve para ganhar a vida.
Lástima. Que puxa...

27 de outubro de 2010

um dia desses

"O Grito", Edvard Munch
Suzana estava cansada, absolutamente farta do seu trabalho como secretária do dentista mais avarento da cidade, farta da gordura localizada que teimava em se alojar em sua cintura; do marido que, quando parava em casa, passava o dia deitado no sofá, sem lhe dizer ao menos "Oi, Suzana"; do filho adolescente que aderira a uma tribo emo e vivia pegando a pouca maquiagem que ela tinha, além de passar as tardes ouvindo músicas esquisitíssimas pela casa; do casal de vizinhos que transavam a noite inteira e faziam um barulho mais infernal do que o da cruza de gatos; do casal de "amigos", Lúcia e Borges, que a convidavam para os programas mais tediosos da cidade, aos quais ela era obrigada a comparecer, já que Lúcia era amante do dentista, seu patrão; cansada dos forrós que rolavam alto o domingo inteiro em sua rua; da faxineira que não limpava os cantos nem tirava as teias de aranha das cortinas; do dono do horti-fruti, que ainda tinha esperanças de levá-la para cama e insistia em vender um cacho de bananas pela metade do preço, só para Suzana; dos mil recados que a Dona Inês, esposa do seu patrão, fazia-lhe anotar (se ao menos Dona Inês descobrisse a putaria do doutor Carlos com Lúcia...); cansada de chegar em casa e ver o pobre, feio e cornudo Borges, sentado na poltrona ao lado de Cláudio, seu marido, os dois bebendo cerveja, cultivando suas panças flácidas e assistindo a uma partida de futebol sem importância. Suzana estava temerosa, completa e irrecuperavelmente farta de sua própria vida.

Ela olhava para o espaço ao seu redor e tudo o que conseguia experimentar era aquela sensação horripilante do homenzinho careca de um quadro que o doutor Carlos tinha no consultório, um tal de "O Grito". Aliás, Suzana nunca chegara de fato a entender porque um dentista - o profissional mais odiado do mundo, depois dos políticos - colocaria um quadro tão assustador como aquele justamente no local onde arrancava dentes podres, fazia obturações e cortava as gengivas dos pacientes. Por que ele não pendurava uma paisagem bonita da Europa, uns cavalos correndo numa pradaria, qualquer coisa, menos aquele sujeito sem olhos, gritando, com tudo parecendo derreter atrás dele. Há muitos anos, quando Suzana tinha acabado de ser contratada como secretária, comentou com Lúcia sobre o tal quadro. A morena alta e peituda, com quadris que eram o dobro dos de Suzana, olhou-a com desdém e disse que aquilo era "arte", era um clássico expressionista, e que alguém como Suzana jamais entenderia de arte. Arte. Então tá. Suzana deveria desconfiar que, já naquele tempo, a Lúcia e o doutor Carlos deviam fazer muita arte expressionista no motel da saída da cidade.

Podiam falar qualquer coisa de Suzana. Que ela era anti-social, fechada, desleixada com a própria aparência, enfim, que falassem dela à vontade, ela não dava à mínima. Mas se alguém abrisse a boca para falar que ela era caloteira ou que punha chifres no Cláudio, aí Suzana virava um saci e só não saía cortando cabeças porque era baixinha e sabia que iria presa se fizesse algo desse tipo. Ela podia ser tudo, menos caloteira e puta. Sua mãe tinha lhe dado muita varada quando criança para enfiar isso na cabeça de Suzana: "conta, a gente paga é no dia que chega; marido, a gente agüenta calada, sem pular a cerca, mesmo se ele for mais seco e espinhoso que um cacto". Lembrando-se das palavras da mãe, Suzana tinha até vontade de rir. Porque Cláudio, antes do casamento, um homem até suportável, agora era muito, mas muito mais seco e inútil do que um cacto.

Suzana tinha apenas 35 anos, mas se sentia como Dona Luíza, sua madrinha, uma senhora de quase 70. Ela arrastava os passos aonde quer que fosse, andava encurvada, não pintava as raízes brancas que começavam a apontar nos cabelos, ou demorava meses para retocá-las, não tinha ânimo para fazer academia como as outras mulheres da cidade, não conseguia dialogar com o filho de apenas 15 anos, não cedia às investidas de Cláudio, que só a procurava depois de beber, no mínimo, duas latas de cerveja e, para ser sincera, ela nem queria muito mais saber daquele esfrega-esfrega sem graça do marido. Quando abria os olhos pela manhã, antes de deixar o almoço pronto para Felipe e Cláudio e ir para o serviço, tudo o que Suzana mais desejava era que o dia passasse na velocidade da luz, para chegar logo a hora de dormir novamente. Suzana tinha mesmo, às vezes, era vontade de sumir. Tinha ganas de entrar dentro daquele quadro feio do doutor Carlos e fazer morada por lá.

Ela não morara a vida inteira em Uberlândia. Suzana havia nascido numa cidade do tamanho de um ovo, chamada Laranjal, na Zona da Mata. Aos 12 anos, já trabalhava, vendendo os doces em compota que sua mãe fazia. Ela descascava as frutas, tirava os caroços, amassava a polpa e a mãe cozinhava tudo com água e açúcar numa panela de cobre enorme, no fogão-a-lenha que tinham nos fundos do quintal. Depois, junto com a mãe, a menina enchia os vidros, colocava-os numa caixa grande e saía com aquilo pela cidade. Para cada pote que conseguisse vender, Suzana ganhava cinqüenta centavos. Ela tinha que vender muito doce em compota para poder comprar um vestido novo, se quisesse. 

Seu pai, um sujeito forte e de bom coração, que Suzana amava, tinha morrido atropelado pelo trem que passava por dentro da cidade naquele tempo. A menina contava, então, dez anos. O povo todo de Laranjal falava, pelas costas da viúva e da filha, que o homem tinha mesmo é se jogado na frente do trem. As duas fingiam que não ouviam, nem sabiam dos comentários mas, lá no fundo, elas também se faziam a mesma pergunta. O choque da morte do pai foi tão grande para a menina, que Suzana ficou uma semana inteira sem comer absolutamente nada. De hora em hora, a mãe entrava em seu quarto, levantava a menina à força da cama e a fazia beber um pouco de caldo de cana. Dona Rita chorava de tristeza pela perda do marido e de medo de que Suzana morresse também. Pois nem a garapa ela tomava. Tudo o que a menina fazia era olhar para o teto, com os olhos vidrados. Dona Rita sabia que Suzana não havia derramado uma lágrima pelo pai. Se ao menos a menina chorasse, quem sabe não melhoraria? A mãe pensava, lá com seus botões, que a filha sentia raiva do pai agora. Raiva porque ela seria a chacota do colégio municipal, porque agora a vida ficaria ainda mais apertada, porque o pai simplesmente decidiu tirar a própria vida e nem se lembrou da filha e da esposa. 

Uns quinze dias depois, a menina tinha voltado a se alimentar direito. Mas os olhos continuavam vidrados e ela pouco falava. Chegou a ir à escola umas três, no máximo cinco vezes, mas não conseguia ler direito mais, nem somar e subtrair como as outras crianças de sua classe. A professora chamou Dona Rita para conversar sobre Suzana. Disse que, talvez, o melhor a fazer seria deixar que ela perdesse um ano no colégio, ficasse em casa e se recuperasse completamente do "acidente" com o pai. Disse isso e pigarreou, altiva. E Dona Rita fez o que a professora lhe aconselhara. Só que, passado um ano, Suzana não quis ir à escola. A mãe sapecou-lhe o traseiro com uma vara de marmelo até deixar linhas profundas e avermelhadas na carne da menina, mas não adiantou. Depois, Dona Rita aplicou um castigo cruel em Suzana, que consistia em comer apenas pão puro e beber água. Pois nem a pão e água Suzana aceitou voltar a estudar. Quando a mãe pegou a velha cinta do falecido e ameaçou chicotear as pernas da menina com aquilo, Suzana fugiu de casa. Ficou sumida por três dias e voltou feito um bicho, coberta de piolhos, com os olhos remelentos e escaras pelo corpo inteiro. Dona Rita não insistiu mais com a menina, com medo de perder a filha de vez. E Suzana nunca mais voltou para estudar.


Foi quando contava 19 anos que Suzana conheceu Cláudio. O rapaz, com 23 anos na época, era caminhoneiro e passara por Laranjal para fazer um trabalho em Leopoldina. Viu a moça na feirinha da cidade e sentiu o sangue ferver em suas veias. Suzana era baixinha, do jeito que ele gostava, tinha cabelos escuros compridos e ondulados, peitinhos pequenos e empinados, e um traseiro firme que fez Cláudio querer uivar, com ou se lua. Ele chamou a moça para dar um passeio de caminhão. Suzana ficou encantada com as histórias que o moço contava de Uberlândia, lá no Triângulo Mineiro, que era de onde ele vinha. Até Belo Horizonte ele conhecia. Encantou-se também com o rosto redondo e bonito do moço, com seus cabelos da cor do milho maduro, e olhos esverdeados. Com tanto palavrório interessante, não demorou para que Cláudio beijasse a moça e a levasse para o fundo da boléia. De roupa ela era um filé, despida, então... Mas nem Cláudio, e muito menos Suzana, contavam com os olhos aguçados e a língua rápida e ferina do "seu" Agenor, dono do mercadinho da rua onde moravam Dona Rita e a filha. Quando Suzana chegou em casa, de mãos dadas com Cláudio, a mãe já a esperava na porta, com as malas da moça feitas. "É com esse aí que ocê fica agora, Suzana. Não te quero, desonrada, aqui em casa". E fulminou Cláudio com os olhos: "Agora leva com'cê, rapaz. E se já tiver mulher te esperando lá de onde vem, Deus ajuda que ela não te mete um pé nesse traseiro sem-vergonha". Olhou uma última vez para Suzana, com seu vestido todo amarrotado e os cabelos despenteados, fez um muxoxo de desgosto e fechou a porta. A moça olhou para Cláudio, desolada, seus olhos escuros fitando aquele verde-mar dos dele, implorando sem dizer uma palavra. Não, ele não tinha mulher esperando em casa. E Suzana era novinha, bonita, doce feito um caramelo, e ainda sabia cozinhar, lavar e passar. Cláudio nem precisou ponderar muito. Para um caminhoneiro, uma esposa até que viria a calhar. E foi assim, por descuido ou displicência, sem graça nem poesia, que Suzana, aos 19 anos, mudou-se para Uberlândia. Um ano depois nascia Felipe e, desde então, ela nunca mais pusera os pés em Laranjal, nem quando a mãe morrera, há três anos. Quem cuidou do enterro foi a madrinha, Dona Luíza, uma alma caridosa e ciente das coisas da vida. 

*****

Ela conheceu Lúcia porque Borges também era caminhoneiro, o melhor, talvez único amigo de Cláudio. E foi Lúcia quem arrumou o serviço de secretária para ela no consultório do doutor Carlos. Mas, antes disso, Suzana lavou muita roupa suja do marido, muita fralda de pano borrada do filho, limpou muito a casa pequena onde moravam. E o salário de Cláudio era sempre muito curto para todas as despesas da família. Pensando melhor, Suzana nem deveria julgar a put..., ou melhor, o caso de Lúcia com o dentista. Se não fosse por isso, ela e o filho estariam à míngua nas ruas de Uberlândia, se fossem depender exclusivamente de Cláudio, que quase nunca parava em casa. Suzana dava um suspiro triste e comprido quando pensava no marido, um homem atraente até hoje. Quantas moças ele ainda não deveria colocar naquela boléia, para passar o tempo nas estradas desse mundo que é Minas Gerais...? Mas ela não tinha tempo para pensar nessas bestagens. Tinha, sim, é que trabalhar e dar um jeito de engolir a seco aquela tristeza que, hoje, parecia matar o pouco que ainda havia de vivo dentro dela.

Suzana tinha a alma povoada de sonhos. Mas nenhum deles, nem o mais simples, ela pôde realizar. Quando ainda era jovem, antes de Felipe nascer, ela era louca para acompanhar o marido em uma de suas viagens pelo Estado. Mas Cláudio nunca lhe concedeu esse agrado. Dizia que, enquanto ele "rodava", ela precisava ficar em casa, tomando conta de tudo por ele. Depois que o menino nasceu, ela sepultou esse sonho banal e comum à toda esposa de caminhoneiro, além de muitos outros desejos que um dia sentira e que, agora, haviam-na abandonado.  

Aliás, banais eram todos os sonhos de Suzana. Ela queria ver o mar do Rio de Janeiro, gostaria de um dia voar de avião, sonhava em ter uma casa maior, para que pudesse decorar como bem lhe conviesse, queria uma televisão grande, para poder assistir às novelas de que ela gostava tanto... E, o que mais? Esse era o maior problema de Suzana. Ela deixara de sonhar há muito tempo, nem sabia mais o que desejar ou a que almejar. Ela sentia apenas um vazio enorme dentro do peito, que crescia a cada manhã, e temia desesperadamente que, um dia, não houvesse mais ela, a Suzana, mas só aquele vazio branco e gelado que a consumia muito mais rapidamente do que ela podia perceber.

Naquela sexta-feira, no final do expediente, Lúcia passou pelo escritório e ficou esperando por Suzana, no banco da pracinha em frente. Ao ver a morena, Suzana não conseguiu reprimir um sentimento de desagrado e repulsa. Lúcia era sua amiga, sim, talvez a única, e sempre a procurava e telefonava. Mas aquele caso dela com o dentista, e o Borges tomando cerveja em sua casa, sem saber de nada, e a Dona Inês, coitada, só cuidando dos cabelos no salão, aquilo não combinava com Suzana. Não estava certo. Mas ela jamais dera pitaco na situação da amiga porque, na verdade, Lúcia não abria espaço para aquele tipo de conversa. Suzana nunca entenderia como as pessoas eram capazes de viver no fio da navalha e se comportarem como se levassem a mais normal das vidas. Ela ajeitou os papéis, agendas e canetas na mesa em que trabalhava, pegou sua bolsa e foi em direção à Lúcia, arrastando os passos como se pesasse cem quilos.

"Oi, Lúcia. Não esperava te ver hoje por aqui, menina". Ela morava em Uberlândia há anos, mas não tinha adquirido o sotaque típico, aquele "r" puxado e enrolado.
"Pois é, Su. Adiantei todo o serviço na padaria e deu pra sair mais cedo. Vim aqui te chamar pra gente fazer alguma coisa."
"Vixe, Lúcia, tô num desânimo, doida pra chegar em casa, 'cê me desculpa, mas...". Lúcia interrompeu a amiga antes que ela pudesse completar a frase: "Só nós duas, Suzana. O Borges saiu hoje de manhã, foi pro Maranhão". Suzana olhou bem dentro dos olhos da amiga. Ela sabia que Suzana reprovava seu caso com o doutor Carlos. Sabia que era um suplício para ela sair com o casal, tendo consciência de que Borges era um dos maiores cornos do bairro. Ela suspirou e sentou-se ao lado da amiga. "Bom, nesse caso, a gente pode fazer qualquer coisa, né?". Além do mais, se voltasse para casa agora, encontraria Cláudio esparramado no colchão, já meio tonto por causa da cerveja, uma bagunça danada na cozinha para ela arrumar e Felipe, um menino que era a sua cara, mas que não tinha nada para compartilhar com ela. Agora, Felipe pertencia aos amigos dele e a mais nada. Talvez fosse mesmo melhor sair e espairecer um pouco com Lúcia.

"Escuta, Suzana, tava pensando de a gente ir naquele Café novo que abriu na Rondon Pacheco. 'Cê vai gostar, só tem gente fina, ninguém bêbado pra encher o saco da gente".
"É, eu tinha ouvido falar desse Café. Um monte de paciente que vem aqui fala dele. Mas, será que é bom mesmo, Lúcia?"
"Uai, Suzana, como é que 'cê vai saber se é bom ou ruim se não for, criatura?", e riu alto. Lúcia tinha uma risada cristalina, contagiante. Suzana riu também. "É verdade. Tem que experimentar, né?".

E pegaram um ônibus para o centro. O Café era simples, sem luxo nem nada requintado. Servia docinhos, uns salgados folhados, sucos de vários sabores, sorvete e, claro, café. Café de todo tipo, misturado com um monte de outras coisas, até café gelado tinha lá. Lúcia escolheu uma bebida com mate, açaí e leite que nem tinha ideia do que fosse. Ela era o tipo de gente que gostava de experimentar. Suzana pediu um café com chocolate, de que gostava, e assim tinha certeza de que não erraria. Ela era diferente de Lúcia. Não gostava do novo, talvez até tivesse gostado e desejado o novo um dia, mas agora perdera toda e qualquer vontade de experimentar o mundo.


"Credo, Suzana, 'cê vem num Café cheio de trem diferente para beber e pede leite com Nescau?"´. Lúcia gostava de fazer farra com a amiga, com aquele jeitão de bicho-do-mato que ela nunca perdera. "Se fosse procê beber leite com Nescau, a gente ia pra sua casa ou pra minha, uai!".
"Desencarna, Lúcia, deixa eu quieta. É capaz docê se arrepender de ter pedido essa coisa esquisita aí, que 'cê nem sabe o nome".
"Que arrepender, que nada, criatura! O que não mata, engorda!". E riu com gosto.

Suzana ficou tomando pequenos goles do seu leite com chocolate e observando a amiga, despachada e extrovertida, contando milhões de histórias, gesticulando amplamente e bebendo aquele líquido roxo escuro. Até que a bebida fazia vista. "Tá gostoso isso, Lúcia?", perguntou, meio sem jeito. "Menina, é bom demais da conta. Pena que 'cê não pediu um também".

Ficaram quietas por um longo tempo, olhando os carros passando pela avenida e o movimento de gente, para lá e para cá, sem parar. Lúcia pediu uma torta folhada de frango com espinafre, Suzana ficou com um pão de queijo mesmo. O silêncio entre as duas estava começando a incomodar Suzana, que não estava acostumada a ver a amiga tão quieta. Depois de mais alguns minutos daquele silêncio sufocante, Suzana quase caiu da cadeira de susto, quando a amiga lhe perguntou: "Esse meu caso com o Carlos. 'Cê não aprova, né , Suzana?"

Ela ficou boquiaberta, ridícula com o pão de queijo na mão, encarando a amiga sem saber o que dizer. "Lúcia, isso é coisa sua, de anos, eu não quero me meter, é sua vida...".
"Não embroma, Suzana. Eu sei que te incomoda. Por isso 'cê não aceita minha amizade".
"Besteira, Lúcia. 'Cê é a única amiga que eu tenho, né não?"
Lúcia largou os talheres no prato e virou-se de frente para Suzana. Ela tinha 45 anos, dez anos mais velha que Suzana, mas sua pele era uma seda, sem rugas nem espinha, e seus olhos brilhavam como os de uma moça.

"Sabe, Suzana, eu não gosto de ser a amante do Carlos. Eu amo muito o Carlos. Ele sempre me disse que ia largar a Inês pra ficar comigo. E isso já tem quase quinze anos. 'Cê acha que é confortável pra mim?"
A porteira tinha sido aberta. Agora Suzana podia, se quisesse, falar o que pensava sobre Lúcia e o doutor Carlos.

"Deixa de ser boba, Lúcia. O Carlos tá te enrolando, 'cê sabe disso, e fica nessa lengalenga, ainda enganando o Borges e a coitada da Inês, caramba".
"A Inês não tem nada de coitada, Suzana. Ela gosta dos cartões de crédito que o Carlos paga pra ela todo mês. 'Cê já reparou na quantidade de jóias que ela usa? Já viu que ela não repete uma roupa sequer? Sabia que ela tem mais de 50 pares de sapato e um monte de perfume francês? A gente passa férias em Caxambu, menina, ela vai pro exterior, 'cê não sabia, não?"
"Mas mesmo assim, Lúcia...".
"Não tem 'mas mesmo assim', Suzana. Ela trocou a fidelidade do Carlos pelo dinheiro e pelo conforto que ele dá pra ela".
"Tá bom, mas e o Borges?"
"Por que, 'mas e o Borges'? 'Cê quer ele procê? Te garanto que não é muito diferente do Cláudio, não. Só tá bem mais careca".
"Desconjuro, Lúcia, essas brincadeiras suas às vezes não convém, sabia? E eu lá quero saber do Borges, coitado... É que ele também fica saindo de corno enganado nessa história..."
"O Borges sabe de tudo, Suzana. 'Cê fica aí, ó, tomando as dores dos outros. E quem é que toma as suas? Pergunta pro Borges se ele quer sair de casa porque a mulher dele tem outro? Pergunta se ele quer perder os privilégios que Carlos me dá e que ele acaba aproveitando, também? Nessa história toda, danada mesmo tô eu, que fico esperando a hora do Carlos ficar só comigo...".

Suzana baixou os olhos. Estava terrivelmente envergonhada por saber os detalhes daquela história. Jamais poderia imaginar que a coisa fosse tão feia e tão enrolada. De repente, teve a sensação de que todos, ela, Lúcia, o Borges, Cláudio, Felipe, o doutor Carlos e Uberlândia inteira estavam dentro daquele quadro que ela odiava. Olhou para Lúcia. Ela estava séria, sobrancelhas franzidas, os lábios tremendo para segurar o choro. Suzana esticou o braço e pegou a mão da amiga. Estava fria e úmida. Contar aquilo tudo não deve ter sido fácil para ela.

"Sabe, Suzana, eu tô ficando velha. Passei os melhores anos da minha vida esperando pelo Carlos. E ainda tem tanta coisa que eu queria fazer...". Suzana pensou em si mesma, no quanto havia ficado amarga, desde que o pai morrera, desde que Cláudio passou a chegar em casa, de folga, e nem olhar mais para ela, passando o dia inteiro no sofá ou no colchão, porque aquilo era simplesmente confortável para ele. Porque, para Cláudio, ter uma casa, uma esposa, um filho e o trabalho que ele fazia desde os vinte anos, aquela vidinha de caracol lhe bastava. E ele não fazia o menor esforço para mudá-la porque, no fundo, estava satisfeito com tudo. Era ela, Suzana, quem queria um pouco mais da vida, para tirar um bocado daquela amargura que tinha crescido na alma dela feito uma erva-daninha. De repente se deu conta da maior diferença entre ela e o marido. Suzana pensava. Cláudio, vivia.

"Escuta, Lúcia, já que é assim, já que 'cê ama o Carlos e ainda vai esperar, uai, nunca se sabe, né? Um dia desses vocês ficam juntos de verdade".
Lúcia olhou para Suzana como se ela tivesse acabado de chegar de um outro planeta. E riu. Mas não foi aquele sorriso cristalino que Suzana invejava. Foi um sorriso amargo e doído.
"Um dia desses, Suzana? Um dia desses? Minha mãe sempre me falava que quando alguém diz 'um dia desses', é a mesma coisa que dizer 'nunca'. 'Cê não sabia disso, não? Um dia desses, amiga, é nunca". Suzana soltou a mão da amiga como se esta estivesse em brasas. O choque das palavras de Lúcia despertou Suzana de um sono mórbido no qual ela vinha vivendo há muito, muito tempo. Lembrou-se então, como se fosse hoje de manhã, o que ela mesma pensava quando ia sepultando, um a um, os seus sonhos, os seus projetos mais pessoais. "Liga não, Suzana. Um dia desses você faz isso". Para cada desejo morto e enterrado, ela se enganava dizendo para si mesma que, "um dias desses", iria em busca daquele projeto. Quantos "um dia desses" ela não deve ter dito a si mesma...?

Suzana sentiu uma tristeza aguda no peito, uma vontade imensa de deitar ali mesmo, no chão daquele Café, e chorar, chorar e chorar, até ficar seca por dentro, até murchar completamente e ser absorvida pela terra. Agorinha mesmo, minutos atrás, quando a amiga lhe disse que a bebida gelada com mate, açaí e leite era uma delícia, e que ela devia provar, pensou consigo mesma: "É, um dia desses eu provo". Mas ela sabia, assim como sabia que dois mais dois seriam sempre quatro, que jamais experimentaria aquela bebida. Suzana não conseguiu segurar as lágrimas. Ela chorava por si mesma, uma mulher que queria tanta coisa, mas não lutava por nenhum de seus sonhos, chorava por Lúcia, uma mulher que amava um homem que jamais seria dela e ainda tinha que conviver com outro, porque este se recusaria a sair de casa. Chorava por Cláudio, que parecia tão feliz na comodidade dormente de suas vidas. Será que seu marido tinha desejos também? E, se tivesse, será que os sepultava, dizendo "um dia desses" a si mesmo? Chorava por Felipe, um garoto tão puro, que se transformava em alguém completamente diferente do Felipe real, só para ser aceito entre amigos que, um dia, ele viria a descobrir que nunca chegaram a ser amigos de verdade. Suzana nunca sentira uma tristeza tão grande em sua vida porque, agora, estava consciente da fonte de sua infelicidade. Ser infeliz, simplesmente, é suportável. Mas ser infeliz e conhecer as razões que levam a tal infelicidade, é um martírio incomensurável. Olhou para Lúcia e, sem dizer palavra, tirou umas notas da carteira, que deixou sobre a mesa. Depois, levantou-se, foi até a amiga e beijou-a na testa. Então, foi para o ponto de ônibus, sozinha. Precisava voltar para casa.

***** 

A casa, que ela havia deixado brilhando de limpa e arrumada, mais parecia um campo de batalha. Havia roupas de Cláudio e Felipe espalhadas por todos os cômodos, latinhas de cerveja nos móveis e no chão da sala, pacotes vazios de salgadinhos pontilhando cada canto da cozinha e uma quantidade inacreditável de louça suja na pia. Cláudio estava deitado no sofá, num estado de torpor entre a vigília e o sono. Suzana foi até ele. Cláudio nem ao menos olhou para a esposa. Ela se ajoelhou a sua frente, para olhá-lo nos olhos, e perguntou, sem cerimônia: "Cláudio, 'cê tem sonhos? 'Cê tem vontade de viver um outro tipo de vida?". O marido olhou-a com uma cara de vírgula, como se Suzana tivesse lhe falado em russo. Demorou um pouco para conseguir decodificar as palavras da esposa e então, perdendo a paciência para uma prosa esquisita como aquela, respondeu: "Tá maluca, Suzana? "Cê bebeu? Que negócio é esse de 'sonho', de 'outra vida'? Me deixa quieto aqui, que amanhã eu tenho muita estrada pra dirigir. Por que 'cê não aproveita para limpar essa casa? Isso aqui mais parece um terreiro de macumba, tá doido, sô!"

Suzana olhou para Cláudio. O rosto dele ainda era bonito, mas seus olhos não tinham o mesmo brilho da juventude. Ele tinha apenas 39 anos, mas parecia um velho derrotado, fraco e ranzinza. Ela perguntou, ainda: "Cadê Felipe? Ele já jantou?". O marido, dessa vez, respondeu sem precisar pensar: "Felipe saiu com uma molecada da rua. Acho que foram ver um desses grupos de bichas tocar em algum lugar da cidade". Aquela resposta era o que faltava para Suzana ouvir e ter certeza. Olhou para a bagunça da sala e a sujeira da cozinha. Então pensou: "Não vou arrumar mais essa casa, pelo menos não agora. Um dia desses eu ponho tudo no lugar". E riu consigo mesma. Pegou um catálogo, procurou pelo número da rodoviária, levou o telefone para o quarto e fez uma única ligação. 

*****  

Da janela do ônibus, Suzana ia olhando Uberlândia ficar para trás. Levava consigo uma bolsa pequena, com não mais de meia dúzia de peças de roupa. Ela não era caracol para ficar viajando com a casa nas costas. E nem viveria mais em círculos, como a concha desse bicho nojento. Ela estava leve e serena. Não podia, ainda, dizer que estava feliz. Àquela altura de sua vida, ela não buscaria pela felicidade. Apenas se permitiria abrir para o mundo, desenterrar sua identidade perdida, descobrir quem era ela, Suzana, de fato e, só então, começaria a ressuscitar seus sonhos. Um a um. Cada um deles que ela mesma enterrou, enganando-se a si mesma, ao marido e ao filho. Aí, quem sabe, a felicidade chegaria até ela, como borboletas num jardim que acabara de florir. 

Na noite anterior, ela tinha reservado uma passagem. Comprara apenas a de ida. A passagem de volta, bem, ela decidiria mais tarde. Acordou cedo, deixou a comida pronta e ligou para Lúcia. Disse que teria que viajar às pressas, pediu mil desculpas por tê-la deixado sozinha no Café, e agradeceu à amiga. "Mas obrigada pelo que, criatura?". "Nada, Lúcia. Nada que eu possa te contar agora". Lúcia disse à amiga que conversaria com Carlos, que daria um jeito de Suzana não perder o emprego. Ela agradeceu, mas, bem lá no fundo, sabia que o emprego, naquele momento, não estava na sua lista de prioridades. Às dez da manhã em ponto, ela já estava na porta do Banco. Foi até o gerente e sacou todas as suas economias, tudo o que havia juntado desde que começara a trabalhar no consultório, aos 22 anos. Não era uma fortuna, havia meses em que não sobrava nada para depositar, mas seria o suficiente. Pelo menos para um recomeço. 

Seu telefone celular só tocou quando ela estava em Barbacena, uma cidade linda, cheia de flores, que ela via pela janela do ônibus, e que era exatamente o meio do caminho até o seu destino. Era Felipe, que chegara em casa há horas e não tinha ideia de onde a mãe pudesse estar. "Tá tudo bem, meu filho. Eu só saí pra dar um passeio. Escuta, tenta ligar pro seu pai. Se conseguir, pede pra ele ligar pra mim, viu?". Silêncio do outro lado da linha. "Felipe, filho, 'cê não precisa se fantasiar pra arranjar amigos, viu? Faz isso só se for o que 'cê gosta, de verdade. Se não, não vale à pena, menino". Mais silêncio. Suzana ouviu seu filho fungar do outro lado da linha. Sentiu pena do garoto. Mas ele era um bom rapaz, saberia encontrar a si mesmo. "Tchau, mãe". E desligou.

O celular só tocou novamente cinco horas mais tarde. Era Cláudio. E, quando ligou, Suzana já havia desembarcado e pegado um ônibus até o seu destino. Atendeu, num misto de euforia e ansiedade. "Onde 'cê tá, mulher? Que história é essa de passeio?" Suzana respondeu rindo, e até Cláudio se espantou com aquela risada, que ambos não ouviam há muito tempo. "'Cê quer saber mesmo, Cláudio? Quer saber dos meus sonhos, dos meus projetos?". Ele pigarreou e falou novamente, dessa vez preocupado de verdade: "Deixa disso, Suzana. 'Cê sabe que eu tô trabalhando na estrada, que não gosto de piada". Suzana era só risos agora. Respondeu: "Eu tô olhando o mar, Cláudio. Como é azul... Nunca pensei que pudesse ser tão grande e azul. Eu tô em frente ao mar de Copacabana, meu marido!". Cláudio engasgou-se com a própria saliva e tossiu furiosamente do outro lado da linha. "Mas, como assim? 'Cê tá no Rio de Janeiro, meu doce?". "Eu não sou doce, Cláudio. É, no Rio. Eu sempre sonhei em ver o mar, 'cê não lembra?". Não, ele não se lembrava. Ou fingia que esquecia porque, se quisesse, teria trazido "seu doce" pelo menos uma vez à praia. "Meu Deus, Suzana, que perigo isso...". Cláudio nem tinha ou sabia o que dizer. Se não havia diálogo entre eles há tanto tempo, como ele poderia engatar uma prosa filosófica àquela altura do campeonato, pelo celular? "Quando 'cê volta Suzana?", foi tudo o que ele conseguiu perguntar. Ela se levantou da areia, onde estivera sentada por um bom tempo, limpou as calças e bateu as sandálias uma na outra para calçá-las novamente. Suspirou, sorriu e respondeu, antes de desligar o celular: "Um dia desses, Cláudio. Um dia desses eu volto".        

26 de outubro de 2010

a primeira vez


"Promessa de Primavera", Lawrence Alma-Tadema
O primeiro encontro de Rosana e Moacir já estava agendado há semanas. Seria um dia especial para ambos por muitos motivos. Para Moacir, aquela seria a primeira noite, em pleno dia útil da semana, que ele passaria fora de casa. Para Rosana, seria o primeiro passo que a aproximaria dele, sua paixão secreta e antiga, que ela trancara em seu subconsciente, mas jamais se permitira vivenciar, de fato. Moacir era, para Rosana, como uma fotografia antiga e amarelada, que ela guardava com todo o cuidado no fundo de uma caixa de jóias, dentro de uma gaveta oculta do armário. Mas que, de vez em quando, ela abria, observava com carinho, tocava as bordas do retrato, colava os lábios no papel como a beijá-lo e, em seguida, guardava tudo novamente, em seu devido lugar.

Rosana e Moacir se conheciam há anos, mas nunca tiveram contato um com o outro, na verdade. Rosana morava numa cidade grande, ocupada com um trabalho que não tinha muito a ver com ela e com uma vida na qual ela lutava para encontrar sentido. Moacir morava em outro estado, a quilômetros dela, e tocava sua vida exatamente como a havia planejado: num traço reto, como numa linha de trem, dando continuidade a todos os seus projetos e construindo seu universo inteiro ao redor daquele local e de sua gente. Rosana era mais "mundana", por assim dizer. Rodava cidades e estradas, começava uma história e logo punha um fim a ela, sentindo-se sempre deslocada, como se não houvesse ainda encontrado um lugar só seu, para fincar raízes e aquietar o espírito.

Moacir e Rosana eram o reverso um do outro, na mesma moeda. Ela, uma sonhadora irrecuperável, que acreditava no destino, na felicidade e na ideia de que, se alguma coisa acontecesse, era porque deveria ser, com certeza. Rosana era a utopia em forma de mulher: pela realização pessoal e pelo amor pelos quais ela tanto ansiava, correria o mundo, recomeçaria a vida mil vezes, apagaria o passado para reescrever o presente, entregaria seu corpo e sua alma sem reservas. Moacir possuía lá seus sonhos, mas estes eram muito antigos, desejos que ele sepultara há tempos, e nem poderia imaginar que, um dia, bateriam à sua porta. Ele não levitava, como Rosana. Tinha os pés firmes no chão, não contava seus segredos e histórias facilmente e, sua diferença maior para com a moça, tinha muitas reservas. Era como se o coração de Moacir estivesse protegido por uma couraça impenetrável. Por isso, ele não se machucava tanto quanto ela. Por isso seu sorriso era mais fácil e seu espírito, mais leve. Para Rosana, que se entregava ao mundo, dava as mãos à palmatória o tempo todo e não se escondia da vida para se preservar, machucar-se era muito mais fácil, assim como ter a alma coberta de cicatrizes também. Por isso ela não possuía a leveza e o riso fácil de Moacir. Por isso era mais introspectiva, quase melancólica. Por isso fora capaz de amá-lo em segredo por tanto tempo.

O primeiro encontro dos dois seria, então, um tiro no escuro, já que nenhum deles sabia como o outro era, de fato. Moacir se lembrava de Rosana como uma moça alegre e sorridente, segura de si e de quem, de vez em quando, ouvia notícias por um amigo ou conhecido em comum com ela. Rosana, ao contrário, não se lembrava de Moacir. Ela sentia que já o havia conhecido há anos, como se tivesse vivido com ele por um tempo e, depois, houvessem se separado por um capricho do destino. Ela só precisava de um espaço, de uma ponte para cruzar e chegar até ele e, então, olhá-lo nos olhos, e não mais a uma ideia de fotografia antiga e amarelada. Para Moacir, Rosana era, e seria uma surpresa. Para Rosana, Moacir era apenas um fato natural de sua vida, mesmo que contrafactual, como o fluir sereno de um riacho, alguém que ela simplesmente precisava ver, tocar, ouvir e ter.

Ela chegou ao local combinado duas horas antes dele. Levara um livro consigo, para fazer-lhe companhia. Em situações como aquela, era sempre bom ter um livro amigo. Era o aniversário de Rosana aquele dia. E ela exultava porque ganharia um presente que sempre quis, mas nunca teve. Arrumou-se caprichosamente para aquele encontro. Roupas novas, sapatos novos, cabelos arrumados, maquiagem bem feita. Olhou-se no espelho-retrovisor do carro e sorriu, satisfeita com o resultado. Ela brilhava, como há muitos anos não brilhava mais. 


"Flores de Primavera", Lawrence Alma-Tadema
Rosana escolheu uma praça arborizada para esperar por ele. Não havia recebido nenhuma ligação até aquele momento, mas não perderia seu dia por causa disso. Ela fora treinada para esperar sempre o pior, sempre nada e, caso ele não viesse, ela suspiraria e voltaria para casa, no dia seguinte. Infeliz, mas viva. Ligou o rádio do carro, mas não havia música nenhuma apropriada para aquele momento. Então, pegou o livro. Recostou-se no banco, esticou as pernas para fora da janela e pôs-se a ler. Passaram-se trinta, quarenta minutos. Ela cochilou um pouco. O dia estava quente, o céu de um tom lápis-lazúli, e uma brisa refrescante entrava pela janela. Ela perdeu a noção do quanto havia dormido. Tinha a sensação de estar suspensa no espaço, onde não havia horas, minutos, nem segundos. Mergulhada num estágio de vigília e sono, Rosana vias as folhas das árvores balançando e o sol brincando de se esconder por elas, via as pessoas passando pela avenida, e um velho mendigo sentado no ponto de ônibus, sua barba comprida e emaranhada, uns olhos fundos e tristonhos. "Se ele não ligar, ou não vier, já tenho um amigo para fazer por aqui e bater papo", ela pensou, rindo de si mesma, olhando para aquele mendigo solitário. Solitário como ela, só que sem uma casa onde morar.

Quando o celular tocou, seu coração acelerou as batidas. "Oi...!". Era sempre assim que ela o atendia. Para o resto dos mortais, um "alô" seco bastava. "Você já chegou?", ele perguntou, ansioso. "Já, tô te esperando". "Tem muito tempo que chegou?". "Nada! Uma meia horinha, só". Ela sempre o poupava de desconfortos, e sempre o faria, se houvesse um próximo encontro, coisa na qual ela não depositava muita fé. "Então, você tá onde?", ela perguntou, insegura. E se estivesse ainda à milhas dali? E se nem tivesse vindo, de fato? "Na entrada da cidade. E você?"

Rosana suspirou, aliviada. Ele tinha vindo. Não precisaria travar diálogo com aquele mendigo solitário para passar o tempo, nem ficar naquela cidade desconhecida, sozinha, para voltar no dia seguinte sem precisar dar explicações a ninguém. Rapidamente ela suspendeu o banco do carro, retocou o batom, ajeitou os cabelos, guardou o livro e se aprumou. Pigarreou de leve, para que sua voz soasse mais límpida e segura. "Bem, eu tô numa praça. Vou te esperar". Ela havia esperado por aquele momento por semanas, vivendo em contagem regressiva. Havia ensaiado mais de mil formas de abordá-lo, como uma adolescente boba do interior. Nos seus planos, ela esperaria por ele do lado de fora do carro, numa pose altiva, com as pernas cruzadas. Ou então, podia caminhar calma e lentamente até ele, quando chegasse. Muito lentamente, para que ele não percebesse sua ansiedade. Poderia, também, sentar num dos bancos da praça e esperar por ele como se horas não tivessem passado. 

Ensaiara, também, o que poderia dizer a ele. "E então, valeu a viagem?". Não, muito casual. "Oi! Que bom que veio!". Não. Assim ele saberia que ela duvidava que viesse. "Sabia que você é o meu presente hoje?". Não. Simplesmente patético. Ou então: "Meu Deus, quanta saudade, você não faz idéia de como eu senti sua falta...". Era isso o que queria dizer, mas Moacir sempre lhe dizia que saudade só se sente de algo que já se teve e, como eles nunca haviam tido nada, principalmente um ao outro, ele não daria crédito algum se ela dissesse que, sim, contrariando sua teoria estapafúrdia, ela sentira saudade, e muita. 

Perdida em seus ensaios para o encontro perfeito, ela se assustou com o toque do celular, novamente. "Oi..!". "Não tô achando essa sua praça de jeito nenhum. Escuta, vou parar num posto, na entrada da cidade, e você vem pra cá, tudo bem?". Ai, ai... Lá se foram, por água abaixo, todos os seus planos e ensaios. Mas assim era Moacir. Mais prático do que ela, não tão apaixonado quanto ela, na verdade apenas curioso, indo direto ao ponto. "Tá bom. Então fica parado, se não, não te encontro".

Rosana levou pouco mais de cinco minutos para encontrar o tal posto. Mas não o viu. Claro, Moacir nunca ficava em plena vista. Estava quase na saída do posto, ele, sim, esperando-a em pé, com as pernas cruzadas. "Ainda roubou minha cena, essa praga!", pensou. Parou o carro com o coração batendo tão rápido que retumbava-lhe nos ouvidos. Suspirou, olhou-se rapidamente no espelho, soltou os cabelos e pensou, irritada, que seria ele a vê-la sair desajeitada do carro, arrumando as roupas, ajeitando os sapatos, enfim... Planejar algo tão inesperado e inusitado quanto um encontro com Moacir seria, no mínimo, inútil. 

Então ela o viu de verdade. Estava ainda mais bonito do que ela se lembrava. Usava jeans escuros e tênis brancos, uma camisa pólo verde e uma jaqueta de camurça marrom. De longe, já sorria para ela e arrumava os cabelos desalinhados. "Lentamente, Rosana. Caminhe para ele lentamente. E sem falar nenhuma bobagem para ocupar o silêncio". Para os diabos com aqueles planos! Ela praticamente correu até ele e envolveu seu corpo num abraço de panda. Nem olhou para ele. Somente o abraçava e beijava suas bochechas e cheirava seu pescoço, pendurando-se a Moacir e quase jogando-o para trás. "Meu Deus, quanta saudade, você não faz idéia de como eu senti sua falta...". Pronto. Ela havia falado. E tudo o que dizia a Moacir era porque sentia necessidade de dizer, sem que ele precisasse dizer-lhe o mesmo em troca. 

"Fica um pouco mais de longe pra eu te olhar direito, Rosana. De perto, não vejo direitinho, não!". Ambos riram de si mesmos, da situação, do posto e dos frentistas que olhavam para eles e dos carros que passavam e buzinavam para aquele casal abraçado, perdido no meio do mundo. "E então, o que a gente faz agora?", ele perguntou. Rosana odiava aquilo. Odiava ter que conduzir a coisa, dar sugestões, ditar as regras do jogo deles. E ela lá saberia o que fazer agora? Entre almoçar, ficar parados ali, olhando-se e beijando-se num posto em plena avenida, parar o tempo ou voltar cada um para sua casa, decidiram procurar um lugar para ficar. "Você conhece a cidade, né, Rosana?". É claro que ela não conhecia. "Você é péssimo em primeiros encontros, Moacir", ela farreou com ele. 

Perderam ainda uma hora até encontrarem uma pousada razoável. Mais tarde, descobririam que a cama rangia como múmias do submundo, os travesseiros eram baixos e molengos, o serviço de quarto praticamente não existia e a pizza que serviam era a da pior qualidade. Mas nada daquilo importava, de fato. Era o primeiro encontro deles, estavam juntos e poderiam começar a se conhecer de verdade.


"Chez Le Pre Lathuile", Éduard Manet
De lá, seguiram para um café da cidade. Não haviam almoçado, mas, àquela hora, não encontrariam comida em lugar algum. E, de fato, não queriam perder mais tempo com detalhes que poderiam ter planejado antes. Rosana não poderia dizer quanto tempo passaram ali, conversando, contando histórias um do outro e rindo como há tempos ela não ria. Ela lembrava que, quando chegaram, o sol ainda estava quente e o céu azul e, quando decidiram voltar, o dia já havia cedido espaço para o lusco-fusco do poente, e soprava um vento frio do sul. Ela comeu pouco, quase nada. Quando estava com ele, esquecia-se de detalhes "banais" como comer, olhar as horas e ligar para o serviço, por exemplo. Com ele, Rosana poderia ver o mundo desabar lá fora e não sentir a menor turbulência em seus braços. Com Moacir, Rosana entendeu porque o tempo presente tem esse nome. Poder viver o presente, sem medo do futuro, nem assombrações do passado, era uma dádiva. Um presente que só Moacir era capaz de lhe dar. Naquele café, Moacir aprendeu qual era a bebida favorita de Rosana e ele, mesmo tendo a sua própria, acompanhava Rosana. Na verdade, os dois aprenderam muita coisa um sobre o outro naquele café. Aprenderam que seriam sempre honestos e abertos entre si, que não poderiam prometer nada para um futuro distante, apenas viver dia após dia, como a vida os permitisse, e que tinham muita coisa em comum, a despeito das diferenças na maneira de olhar: Moacir, mais otimista, embora sempre com os dois pés atrás para se resguardar. Rosana, contraditoriamente, mais pessimista que Moacir, mas pronta para entrar naquele terreno com os dois pés, os dois braços, mais o carro, o gato, o cachorro e o papagaio. Enfim, eles eram o reverso de cada um, numa única moeda.

Depois de mais de dez horas de conversa, Moacir já sabia muitos segredos de Rosana, embora ela não houvesse descoberto muita coisa dele. Não fatos palpáveis, porque, intuitivamente, ela conhecia aquele homem como jamais houvera conhecido nenhum. Já era meia-noite, ambos estavam cansados de tanto falar, rir e (re)descobrir. Rosana observou Moacir ir até o banheiro e vestir uma camisa e uma bermuda. "Bem, acho que essa é a deixa pra dormir", ela pensou, confusa. Talvez ele não a quisesse, talvez não houvesse química entre eles, só uma enorme sintonia que poderia virar uma grande amizade, embora Rosana desejasse Moacir como tudo, menos amigo. E, se fosse assim, talvez tudo fluiria mais facilmente para os dois, sem que se entregassem completamente.

Rosana levantou-se, foi até a bolsa que havia trazido e pegou uma camisola. Em casa, ela jamais usaria uma camisola para dormir, e muito menos uma calcinha tão desconfortável como aquela. Mas, sendo uma mulher, ela sabia que não poderia vestir seus pijamas surrados e suas calcinhas molambentas para se encontrar com Moacir. Ah, não. Calcinha desconfortável e sexy, sim. Calcinha molambenta e ultra-confortável, jamais. Esta era apenas uma das desvantagens em ser mulher. 

Rosana escovou os dentes, ofereceu sua escova a Moacir e vestiu a camisola. Olhou-se no espelho do banheiro e se sentiu como uma impostora, ridícula numa camisola que comprara para aquela ocasião e que era feminina demais para ela. Suspirou. O que não tem remédio... Nua é que ela não poderia ficar. A maquiagem, que fizera cedo pela manhã, estava meio borrada. Ela fez o que pôde para consertar o estrago, e se amaldiçoou mil vezes por não ter trazido lenços umedecidos, nem demaquilante. "Da próxima vez, não, Rosana, sua imbecil, se houver uma próxima vez, você traz o demaquilante".

Suspirou, encheu-se de uma coragem olímpica e caminhou até a cama. Deitou-se de costas para ele, que a abraçou. "Eu nunca vou esquecer esse dia, Rosana". Ela adorou aquela frase mas, lá no fundo, sentiu uma pontada de dor porque achou que a fala de Moacir representava uma despedida velada, uma forma de ele lhe dizer que aquela seria a primeira e única vez em que estariam juntos. Ela sorriu, tímida e deslocada, e olhou para ele. Não queria dizer "eu também não", não queria despedidas, mas, ainda assim, disse, para não deixá-lo no vácuo. 

Ela o escutou preparando-se para dormir e pensou: "Meu Deus, tô totalmente sem sono, não tem uma luminária para eu ler aqui, e nem sei se luz acesa atrapalha esse homem... Como eu vou fazer para dormir?". Claro, ela poderia se valer de um comprimido que a apagaria em meia hora, mas, tomar remédios para dormir, num primeiro encontro, podia deixar uma péssima impressão. Isso ela não faria. Que ficasse insone feito uma coruja solitária a piar na mata!


Apolo e Daphne, J.W. Waterhouse
Ela chegou seu corpo mais perto do dele, porque queria sentir aqueles braços envolvendo-a uma última vez. Então, Moacir, ainda mais tímido e embaraçado que Rosana, deslizou a mão por uma de suas coxas. Rosana arregalou os olhos no escuro e sentiu uma descarga elétrica percorrer seu corpo. Não se virou de imediato para ele, não sabia exatamente o que estava acontecendo, ou não acontecendo, ou se estava simplesmente sonhando acordada. Então, Moacir subiu sua camisola e  afastou sua calcinha para o lado. "Que alívio", Rosana pensou. "Não aguentava mais essa coisa me incomodando". Beijaram-se, nervosos, ansiosos e sequiosos. Ele tentou penetrá-la por trás, mas ela queria, precisava ver o rosto dele, por isso puxou-o para cima de si. Ele resistiu um pouco, no começo, mas logo se posicionou e abriu-lhe as pernas. Rosana assustou-se. Não estava esperando mais por aquilo, seu corpo já havia se desconectado da ideia de se entregar aquela noite. "Espera, Moacir, vai devagar". Ele pareceu não ouvi-la. Estava concentrado em possuí-la, em consumar aquele encontro a todo custo. Ela tentou se levantar, para tirar a camisa dele, beijar-lhe o peito, mas ele a empurrou delicadamente para a cama de novo, e se despiu sozinho. Rosana sentiu-se meio boba com aquela camisola desconfortável enrolada até a altura dos ombros e a calcinha mal ajeitada no corpo. Como ele não fez menção de despi-la, ela mesma o fez.

Agora estavam ambos nus e arfando. Havia um espelho grande em frente à cama, mas Rosana estava tão embaraçada que não ousou olhar para o reflexo dos dois uma única vez sequer. Ela tinha idealizado aquela noite com demora, vagar e sutileza, mas Moacir a penetrou com fremência, olhando-a nos olhos, na crueza pura e real do sexo. Ela não sabia como se mexer, ou se deveria se mexer, sua cabeça rodava e ela chegou a ficar tonta. Então, ele disse, bem próximo ao seu rosto, inebriando-a com seu hálito morno: "Agora eu posso ter saudade. Agora eu tenho você". E beijou-a na boca, buscando-lhe a língua que ela teimava em esconder, porque temia não o beijar da maneira que ele gostasse.

Quando Rosana ouviu aquelas palavras, acompanhadas do gemido profundo, muito baixo de Moacir, soube que pertencia a ele, e que pertenceria para sempre, mesmo que aquele fosse o único encontro deles. Ele virou-a de lado, encaixando seus quadris no sexo entumescido, quase voraz. Era inacreditável, mas ele podia dar estocadas lentas e vêementes e falar ao mesmo tempo, e tudo isso sorrindo: "Eu preciso ver quando te encontro de novo, Rosana". Ela quase explodiu de felicidade e gozo. Moacir puxou-lhe os cabelos com gentileza, para que ela levantasse um pouco mais a cabeça, segurou um dos seus seios, pequenos em comparação com suas mãos grandes e disse, sério, ao seu ouvido: "Eu quero, eu preciso te namorar, Rosana". Então o mundo parou de girar para ela, a realidade lá fora dissolveu-se por completo e Rosana descobriu que poderia se entregar, amar, dar e sentir prazer. Aquela noite, Rosana sentiu um sono natural, impactante, daqueles de se dormir por dez horas seguidas, sem um comprimido sequer. E de alguma forma, na intuição que conduzia a maioria de suas decisões, ela soube que aquele não seria o único encontro deles.