10 de outubro de 2010

Família



Pai: Alceo, meu primeiro, verdadeiro, grande amigo. Companheiro de viagens, a força propulsora que, nas noites sem lua, me lembra que é preciso levantar a cabeça, seguir em frente, lutar sempre. Pai que me vê ovelha, mas espera que eu seja mais lobo. Mesmo em nossos embates mais cruéis, chegamos a um acordo no final. Ele foi, ainda é, e vai ser sempre o nó da minha vida.

Mãe: Adelaide, o meu revés, o reverso da mesma moeda, que me completa. Uma mulher endurecida pela vida, um gato selvagem e escaldado, que constrói castelos para todos nós, mesmo no auge máximo do cansaço e da dor. Mãe que me vê como seu oposto, porque ainda não abriu os olhos o suficiente para enxergar o muito dela que tenta brotar em mim. Temos jeitos diferentes de amar e demonstrar amor, ela e eu, o que gera embates. Mas, em frangalhos ela, em frangalhos eu, somos o soldado amigo uma da outra, que carrega uma a outra no colo, pelo campo de batalha e sob flechas mortais, até um local mais seguro. 

Irmã: Cristiane, essa meia-irmã e minha madrinha, que me acompanha à distância, e eu, a ela. Separam-nos 16 anos em que viemos ao mundo, ela e eu, mas sua juventude é ainda maior, muito maior que a minha. Cris é a fênix que eu gostaria de ser, a mulher que se reconstrói em segundos, abraça novas causas, novas vidas, novas Cristianes. Quando me meto em encrencas que nem meus pais suportariam, é sempre Cristiane que vem em meu auxílio. 

Sobrinhos: Carlos e Camila, filhotes de Cristiane, nasceram quando eu tinha 7 anos. Não me chamam de "tia", lógico e, se chamassem, eu cortava os dois na vara. Camila, a caçula, é a paz e atitude Zen em pessoa. Carlos, um homenzarrão de mais de 1,80m, é um sujeito caladão, que adora Tolkien, informática e sua namorada linda, de cabelos vermelhos da cor do urucum. 

Filho: Arthur, esse pequeno homem de três anos, uma personalidade obstinada e arisca. Um guri apaixonado por super-heróis, cavalos e lanternas. Meu filhote que ouve comigo minhas músicas amadas e já sabe de cor algumas delas. Um menino doce que, ao dormir, precisa segurar uma de minhas mãos. O que ele ainda não sabe, mas vai compreender um dia, é que terá minhas duas mãos estendidas para ele, sempre.

Luciane: a filha da minha tia mais amada, tia que me ensinou três coisas das quais jamais me esqueci: não mentir nunca; não colocar tanto creme dental na escova e lavar a pia depois; e juntar-me a um homem que me amasse mais do que eu a ele. Lu, como sua mãe, é uma das poucas pessoas no mundo que ainda me chamam de "Beta", a maneira como eu mais gosto de ser chamada. Luciane é tia Lígia de novo, num outro corpo, mas com a mesma alma, e eu a amo por isso. Ela conversa horas comigo, sentada no chão, e me dá relíquias da família para que eu cuide delas. Se chego em sua casa à uma da manhã, ela acorda a todos, insiste em que eu jante, faz a cama para eu dormir, sorri e chora comigo. Luciane é um porto-seguro porque não muda nunca, mesmo com o passar dos anos. Ela segue os mesmos horários alternativos que eu, odeia compromissos com hora marcada e sempre, sempre chega atrasada, como eu. Se fôssemos irmãs, não seríamos tão parecidas. Lu passou grande parte da juventude cuidando de mim, quando eu passava férias em sua casa. E me contava as histórias mais lindas para me fazer dormir, desembaraçava meus cabelos e fazia um belo rabo-de-cavalo, me vigiava para tomar banho, escovar os dentes e não andar descalça. Agora sei, como sei que dois e dois são quatro, que ela fará as mesmas coisas pelo meu filho, como se ele fosse dela própria.

Elildo: companheiro de Lu, pai de suas três filhas. Elildo é despachado, descolado e eu o amo por muitos motivos: ele odeia frescuras, assim como eu, e é a pessoa mais prestativa que eu já conheci (como sua mulher). Elildo faz o melhor bife acebolado do mundo, e as melhores bananas fritas também. É um sujeito que gosta de sorrir e, com seu jeitão bronco de capiau que ele se orgulha de ser, é de uma honestidade a toda prova e tem um coração do tamanho do Brasil. Ele e a Lu são um casal engraçado de se ver porque, há mais de 20 anos juntos, eles brigam como duas crianças e, às vezes, suas brigas viram brincadeiras e, imersos no mundinho deles, os dois ignoram que isso é amor. O Elildo faz tudo que sua mulher manda. Reclama, xinga e dá coices, mas obedece. Ele pode até demorar para consertar um armário, porque Elildo vive num ritmo lento mesmo, mas vai consertá-lo. Ele também me chama de "Beta" e, quando eu venho embora chorando, ele me abraça e diz: "Chora não, filha. Semana que vem você volta, que nós vamo tá esperando, com as porta aberta". E, até hoje, sendo eu uma balzaquiana, Elildo ainda me chama de "aquela negrinha", como se eu ainda tivesse dez anos. Meu filho adotou o Elildo, e ele ao Arthur, e pelo "molequinho", ele faz tudo, até o que não pôde fazer pelas próprias filhas.

Raísa, Natacha e Soraia: os filhotes de Lu e Elildo. Meninas, agora quase mulheres, tímidas, discretas e caladas, mas sorridentes. As duas últimas são gêmeas idênticas e, confesso, não sei distinguir uma da outra. Custava uma cortar o cabelo, pelo menos? Raísa, a primogênita, é a que mais se parece comigo: tem uma alma antiga e carrega consigo uma melancolia que, às vezes, dói. Muito ajuizadas, as três são caseiras e gostam de conversar baixinho. Quando Raísa era um bebezinho, chorava de cólicas no berço e eu, não posso mentir, tinha vontade de esganar aquele pescocinho gordinho que ela tinha. Na época, eu pegava um móbile com penduricalhos barulhentos e balançava na frente da carinha dela, para ela parar de chorar. Mas, aos 15 anos, eu era um moleque, jamais me ocorrera pegar Raísa no colo. Eu poderia ter ajudado Luciane muito mais, naquela época, mas acredito que, agora sim, é que vou poder apoiar suas filhas. O diacho é que Lu não me deixa trazer as meninas para passar uma temporada comigo. Tem medo de que elas percam a timidez, tão protetora nessa fase da vida. Mas, se a mãe não deixar de jeito nenhum, trago as três comigo, escondidas.

Sílvia: essa prima é apenas um ano mais nova que eu, filha de tio Hélio, o caçula. Tio Hélio sempre foi, e ainda é, um bom conselheiro, para seus filhos, amigos e sobrinhos.  Silvinha tem uma irmã, a Flávia, que era mais "mocinha" na época e, portanto, não iria brincar de fazer bolinhos de barro, nem subir em pés de jabuticaba mesmo. Sílvia e eu temos muita coisa em comum: as mesmas brigas com nossas mães, as mesmas enxaquecas, a mesma intuição aguçada, a mesma personalidade forte dos Rohen (mas o gênio de Sílvia é muito, mas muito pior que o meu), a mesma comichão na alma que nos dá uma sensação incômoda de que há sempre alguma coisa faltando. Foi Sílvia que me aconpanhou nas brincadeiras na roça, há anos. Mas, ainda assim, eu era mais moleque que Sílvia e, muitas vezes, ela me acompanhava na marra. E ainda batia em mim, a danada (ou era eu quem batia nela...?). Eu e Sílvia brincávamos e brigávamos muito também. Hoje, depois de anos separadas, felizmente nos reencontramos. Pessoalmente, agora acho que a coisa se invertou: Sílvia ficou mais "moleque" agora, depois dos 30. Ou talvez eu tenha perdido um pouco da minha molecagem, não saberia dizer ao certo... Sílvia tem um coração imenso e é de uma prestatividade única. Graças a ela, eu posso ficar na roça em pleno dia de semana, porque é pelo fax do escritório onde ela trabalha que eu passo meus pedidos de remédios, que vão chegar no dia seguinte, a 300 km dali. Há um motivo especial para eu amar a Silvinha: eu sei, como ela sabe também, que as portas da casa dela e do seu coração gigante vão estar sempre abertas para mim, quando eu precisar. E minhas portas e meu coração também estarão sempre abertos para ela. Sílvia e eu fomos e somos companheiras de cruz. E isso une as pessoas como pouca coisa.    

Abílio César: irmão de Lu, meu primo e padrinho. Não sei onde meus pais estavam com a cabeça quando escolheram Abílio César para ser meu padrinho, porque ele consegue ser ainda mais doido e arisco que eu. Se eu for falar desse meu padrinho aqui, com detalhes, vou escrever milhares de parágrafos, porque ele é uma figura, dessas que aparecem na Terra a cada três mil anos. Abílio César é o cabra mais curioso que você jamais vai conhecer, e faz as perguntas mais indiscretas para satisfazer essa curiosidade que comicha em seu peito. Quando solteiro, ele voltava de suas noitadas e acordava tia Lígia no meio da madrugada para contar suas "façanhas" para a mãe. De todos nós, talvez seja Abílio César quem mais tenha sentido a partida de tia Lígia. Quando éramos crianças, eu e minhas primas, ele adorava baixar nossas calças, para mostrar nossas calcinhas. Na época, a gente fervia de ódio, mas hoje, quando ele ainda tenta fazer essa brincadeira, caímos todos na gargalhada, pelos velhos tempos que não voltam mais. Ele é teimoso feito um bode velho, morre de cíume das duas filhas, que já cuidam de sua terra com ele, e tem discussões homéricas com seu pai, o único agregado da família que eu chamo de "tio". A barulheira que os dois fazem chega a ser engraçada. Mas, mesmo às turras, Abílio César cuida do pai, e vai cuidar dele até o fim dos dias. Minha relação com esse padrinho-primo é meio doida, porque a gente briga muito, discute, não se entende, mas, ainda assim, conversamos bastante. E, a cada cinco anos, colocamos o papo em dia e trocamos confidências. 

Mariana e Mirela: as crias de Abílio César e Maria Amélia. Duas moças lindas, doces mas que herdaram a personalidade forte de seu pai. Mariana, a mais velha, sorriu para o pai ainda no hospital, no dia em que nasceu. Ela ainda transita entre o mundo da roça e o mundo da cidade. Mas é jovem. Tem tempo para escolher. Mirela, ao contrário, é cem por cento fazendas, cavalos, cães, cabritos, gado e pasto. Ela é a versão feminina do pai, uma graça de se ver quando monta a cavalo com seu canivete preso à cintura. Quando tinha uns nove anos, no máximo, Mirela ouviu um barulho de rã no brejo e me perguntou: "Quer comer, Roberta?". Eu disse que sim, assim, por dizer. A menina não perdeu tempo: pegou uma pedra, deu cabo da rã, levou para casa e pediu para Elildo fritar. Naquele momento eu soube que, se depender de Mirela, as terras nossas vão continuar na família. Mirela não tem "Rohen" no nome, porque o teimoso do pai não quis colocá-lo, por razões inexplicáveis e insensatas. Mas, querendo ou não, ela é uma Rohen autêntica. Hoje em dia, faz tudo o que um peão crescido faz, e até mais. Quando estiver um pouco mais crescida, vai estudar Veterinária, para cuidar melhor de seus bichos. Ainda vou ter muito orgulho dessa minha prima-peão. 

Tio Dudu: o nome dele é João Batista Rohen, porque nasceu no dia desse Santo, 24 de junho. Eu nasci um dia antes, muitos anos depois. Tio Dudu é meu segundo pai, um companheiro de viagens e conversas. Dos três irmãos que restaram, ele é o mais calmo, pacífico e carinhoso. Meu pai conta que quando Dudu era criança, era o mais brigão dos irmãos. Adorava sair aos domingos para jogar futebol e era excelente atacante. Mas, por causa das peladas, sempre arranjava brigas regadas a socos, chutes e ponta-pés. Meu pai conta que ele não perdia uma briga. Hoje, se você conhecer tio Dudu, não acredita nisso, porque ele é a própria definição do Zen em pessoa. Na primeira viagem de carro que fizemos juntos, há 14 anos, quase matei meu tio nas curvas. Naquele tempo, eu corria mais e só andava com os vidros do carro fechados e o ar condicionado ligado. Bem, eu ainda ando assim, menos com tio Dudu, porque nós descobrimos que, se a janela estiver um pouquinho aberta, ele não fica verde de enjôo e a ponto de bater as botas. Ah, sim. Um Dramin antes da viagem também ajuda. Tio Dudu fica tonto em escadas-rolantes e pontes de madeira que balançam, mas embarca nessas aventuras comigo assim mesmo, e esse é um dos muitos motivos pelos quais eu amo esse meu tio. Há 16 anos, tio Dudu foi à Pedra Branca comigo, uma caverna no topo de uma serra absurdamente alta. Isso foi um marco na região, porque pouca gente já teve pique para subir aquela serra com facão e entrar no escuro da Pedra Branca. Meu tio Dudu tem a risada mais gostosa desse mundo, conta casos ótimos e é grande conversador, se você souber fazê-lo falar. Ele reluta, mas ainda o levo para andar no Bondinho, no Rio, comigo. E isso é uma promessa. 

Essa é a família com quem eu convivo desde que nasci. Mas tem muito, muito mais gente. Gente que se foi, como meu amado vovô Juca e minha querida vó Nair. Tia Liginha, tio Alarico, o primogênito, uma doçura de pessoa. Carlinhos, filho de tio Alarico, que foi tão cedo...

E tem também o povo com quem eu convivi pouco, ou quase nada, principalmente também pela diferença de idade minha para os meus primos de primeiro grau. Nós, os netos de Juca e Nair, somos todos da sexta geração da família. Só tio Alarico e tia Nunci tiveram seis filhos e cada um deles já tem seus próprios filhos, alguns até netos! Meus primos de primeiro grau estão todos na fase dos quarenta e cinco anos, com excessão de Sílvia e Flávia, filhas de tio Hélio, o caçula. Não fosse pelo caçula, eu, temporã, não teria tido primos na minha faixa de idade para brincar. 

O tempo passa, e passa rápido demais. Hoje, tenho muito pouco contato com meus primos de segundo e terceiro grau. Praticamente não os conheço, por não ter convivido com eles. Mas acompanho muitos deles pelo orkut, mesmo que só para saber que eles estão ali. Quando quero me gabar, dizendo que nossa família só tem gente bonita, mostro fotos de Mariana, Mirela, Raísa, Natacha e Soraia. Ou então de Lauren e Laís, filhas de Fátima, moças belíssimas, netas de tio Alarico. E quando quero mostrar a nata da linhagem Rohen, em termos de beleza e proporção, visito o perfil de Carol e Lázaro - estes, modelos mesmo, de desfilar e tudo o mais - crias de Marcos, netos de tio Dudu.

Tenho uma vaga lembrança desses dois correndo no terreiro de tia Lígia. Carol, um foguete moreno, tentando agarrar o rabo do Juba, um cachorro que a Lu adorava. Lázaro, um branquelinho mais quieto, que gostava de ficar rabiscando a terra com um pauzinho, encostado na antiga goiabeira, que nem existe mais. E tem também Larissa, uma pimenta, filhote de Marcinha, a outra cria de tio Dudu. Esta era "bicho-puro", que é como a gente se refere a crianças agitadas e levadas, em geral.

Lembro-me de Larissa, na época uma fotocópia de tio Dudu, subindo no pé de jamelão e levando Marcinha à loucura. Ah! Agora tem Pérlio, o temporão de Márcia, que tem os mesmos três anos do meu Arthur, graças a Deus. Minha cria vai ter pelo menos um primo com a mesma idade dele para brincar. Mandou bem, Marcinha. E tem o Heitor, cria de Sílvia, um moleque adorável de nove anos, que adora conversar e passar dias na roça, andando a cavalo. Heitor já é uma paixão minha, que qualquer dia carrego comigo para cá, sem que Sílvia saiba, lógico.

Meu núcleo familiar, aqui onde moro, é muito pequeno: somos eu, Arthur, meu pai e minha mãe. A saudade desse povo todo é tanta que me leva a fazer o caminho da roça quase quinzenalmente, para eu espantar a solidão, ter novamente aquela sensação maravilhosa de casa cheia, com a família que a gente ama. Eu sou uma mulher feita de raízes, laços e nós. Essa história, portanto, dedico a vocês, que estão aí, próximos uns dos outros. Para vocês, fica mais fácil manter os laços atados. Então, façam isso. Não percam suas raízes, não se desencontrem. Ao contrário, encontrem-se até mais. E procurem fazer o caminho da roça, se não sempre, pelo menos de vez em quando, para se lembrarem de onde todos nós viemos.                  

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