26 de outubro de 2010

noite de hotel

"Primavera Eterna", Auguste Rodin
Era ainda madrugada alta. Ela dormia de lado, abraçada às costas dele. Não fazia frio, por isso os dois precisaram apenas de um lençol fino para cobri-los. Além do mais, ele havia ligado o ar-condicionado antes de se deitar. Naquele momento, ela suava muito, mas não porque estivesse com calor. Era um suór frio, quase pegajoso, que tomava conta de seu corpo sempre que ela tinha uma noite agitada, povoada por sonhos vívidos. Ela se mexeu um pouco na cama grande do hotel, enroscando-se mais ainda a ele. Na manhã seguinte, logo após o café, iriam embora. Ela, de volta à realidade vazia e tediosa do dia a dia, ele, no sentido contrário, para a sua vida organizada e, até onde ela sabia, plena. Portanto, era preciso aproveitar cada minuto do dia e da noite, respirar junto com ele, velar seu sono, sentir o cheiro que sua nuca e a massa farta de cabelos pretos exalavam. A noite que antecedia a despedida era sempre a noite em que ela suava em bicas, tinha muitos sonhos e, invariavelmente, não dormia bem.

Ele ressonava ao seu lado. Fazia um arrulhar indefectível de pombos no telhado, um barulho que a acalmava e embalava. Ela encostava a cabeça bem próxima da dele, para absorver aquele som. Quando não estivessem mais juntos, sua memória resgataria a cena por inteiro, o arrulhar do sono dele, os aromas do corpo em repouso, o jeito de ele segurar o travesseiro com um braço e dormir de lado, sobre ele. Ela ansiava por passar a noite acariciando-o, mexendo em seus cabelos, segurando-lhe as mãos grandes e calosas. Mas não podia. O sono dele era bastante leve e, além do mais, ele não era o tipo de homem que gostasse de ser acariciado enquanto dormia. Era mais prático que ela, talvez não se entregasse tão sem reservas ou, simplesmente, talvez estivesse com sono e precisasse dormir, para estar descansado para a viagem no dia seguinte. Então, muito de leve, ela tocava em seu braço, às vezes na linha das costas musculosas e, atenciosa, verificava se seus pés estavam cobertos.

Então ele mudou de posição na cama e deu um suspiro longo. Ela fechou os olhos, para que ele não visse que estivera acordada, olhando para ele, absorvendo cada detalhe dele. Levantou-se. Era algo que ele sempre fazia, levantar no meio da madrugada, ir ao banheiro e tomar um copo d'água gelada. Em quartos de hotel, existe uma ilusão de intimidade como em nenhum outro lugar do mundo. O frigobar é ao lado da cama, o banheiro fica a poucos passos do armário, a cadeira com roupas dobradas e penduradas perto da porta, a mesa com a bolsa dela e a carteira dele, juntos, enfim, o espaço confinado levava a crer numa sincronia perfeita, numa intimidade pela qual ela ansiava como nada mais no mundo.

Bem quieta na cama, ainda fingindo dormir, ela o observou espreguiçar-se e caminhar descalço até o banheiro. Usava uma camisa branca e boxers, e não calçava chinelos nunca. Da cama, ela olhava suas pernas esguias e morenas e o jeito de ele passar as mãos pelos cabelos, arrumando-os. Ouviu os barulhos que ele tentava não fazer para não a despertar, e sorriu baixinho. Como ele podia pensar que ela seria capaz de dormir na noite da véspera do último dia deles juntos...? Ouvi-o pigarrear, fungar e esfregar as mãos uma na outra, para aquecê-las. Cada golada de água que ele dava ela era capaz de escutar.

Não o via, porque estava de costas para ele, mas podia visualizar claramente seu pomo-de-adão pronunciado subindo e descendo pelo pescoço forte, à medida que engolia. Ela era simples e completamente louca por ele, e não deixava que detalhe algum lhe escapasse. Era louca pelo direito e pelo avesso dele, ao ponto de imaginar seu sangue correndo pelas veias saltadas dos braços, pernas e mãos, ao ponto de desejar matar a própria sede com a saliva dele, lamber-lhe o suór da testa para sentir o sal de sua pele, beber dele em um dia e uma noite tudo com o que ela sempre sonhara, há tanto tempo, e nunca pôde ter, não por inteiro. Ela amava os dentes dele quando sorria, e amava mais ainda os sorrisos dele, que iluminavam sua vida. Amava sua voz e as risadas sem sentido que ele dava no meio das conversas longas que tinham, adorava seus olhos cor de caramelo, adornados com cílios escuros, espessos e longos, e as mil facetas que aqueles olhos tinham. Eles podiam ser sérios e soturnos, alegres e irônicos, cúmplices e sensuais, confidentes e sinceros. E, no êxtase, aqueles olhos escureciam e esgazeavam, como se ele estivesse voando para longe dali. Mas não estava. Estava bem dentro dela. Para sempre. E nem se dava conta disso.

Ele voltou para a cama, bem ao lado dela. Deu-lhe um beijo manso e morno na testa, e ela precisou se conter para não levantar, abraçá-lo, pedir que ele lhe contasse uma história ou uma piada, lhe tirasse a camisola, beijasse seu corpo inteiro e a tomasse como homem algum jamais tomaria. Mas era preciso dormir. Era preciso um pouco de praticidade, cautela e reserva. Ela suspirou, um suspiro longo e contido, abafado no travesseiro. Apertou os lençóis com ambas as mãos, pensando que logo o sol raiaria e ele estaria longe, muito longe dela. Seus olhos marejaram, subitamente. Como ela gostaria de parar o tempo, congelar aquele momento, pelo menos por tempo suficiente para ele acreditar que o amava, para que ele pudesse, um dia, amá-la também. O tempo nunca fora um aliado dos dois. Ao contrário, eles tinham que correr atrás dele, subjugar-se a ele, ao tempo que não voltava, ao tempo enorme que já havia passado. Ela enxugou o rosto molhado de lágrimas teimosas no travesseiro, tomando muito cuidado para não acordá-lo novamente. Ele acordava muitas vezes durante a noite, mas logo voltava a dormir. Nessas horas, ela se perguntava em que ele poderia estar pensando, mas nunca o deixava perceber que ela via tantos detalhes. Isso poderia assustá-lo e este era seu maior medo.
  
Alguns minutos depois, sua mente finalmente cedeu ao cansaço. Ela foi lentamente se concentrando na respiração dele, no movimento do seu peito e em seu arrulhar constante de pombo. Foi-se acalmando aos poucos, colando seu corpo ao dele, cheirando-o feito um filhote de cão abandonado e carente. Abraçou-o e ele segurou sua mão, apertando-a de leve. Ela sorriu, infinitamente feliz por isso, antes de adormecer.

*****

Ela abriu os olhos lentamente, cansada, insone e com a boca seca. Olhou para a janela do hotel, cujas cortinas ele havia fechado na noite anterior. Agora estavam abertas, o que significava que ele já havia acordado há tempos e andado pelo quarto. O céu estava nublado e não havia muita luz. Não deveria passar das sete da manhã, mas ele nunca ficava na cama mais tarde do que isso. Ela quis desesperadamente tomar um copo de café com leite, ou mesmo uma água, virar para o lado e voltar a dormir, até o meio-dia. Mas isso era um sonho dela, levantar-se já com o sol alto, passar o dia com ele, levá-lo para conhecer lugares que ele ainda não conhecia, brincar com ele nos parques da cidade, beijá-lo na boca o quanto quisesse e nunca, nunca dizer adeus. Entretanto, a realidade era outra.

Virou-se demoradamente para ele que, deitado de costas, olhava para o teto, os braços cruzados atrás da cabeça. Ele sempre acordava assim: fresco, renovado, com o hálito morno e adocicado. Ela sorriu para ele e envolveu seu torço num abraço comprido e apertado, escondendo-se na curva de seu pescoço. "Não me sufoca, mulher!", ele ralhou com ela, empurrando-a de leve. "Quero te ver", completou, olhando para o seu rosto fixamente. Ela esfregou os olhos, umedeceu os lábios e arrumou os cabelos discretamente. Pura tolice, pensou consigo mesma. Ele saberia que estava se arrumando para ele. 

"Acordou mais tarde hoje, homem?", ela perguntou, em tom de brincadeira. "Já tô acordado há horas, esperando você, preguiçosa". "Mentira sua. Ainda é cedo demais...". A voz dela já não era tão radiante como no dia anterior. Ele deu uma gargalhada que encheu o quarto. "Besteira. Já tá tarde. Quase sete e meia". "Já sei, já sei, você está morto de fome e quer tomar café. Mas nenhum hotel decente serve café assim, tão cedo!". Ele riu mais uma vez, bagunçou sua franja e apertou seu nariz. Ela gostava de falar qualquer bobagem que fosse para fazê-lo rir, contar histórias com gestos teatrais para entretê-lo, fazer as maiores loucuras, que jamais fizera ou faria, para arrancar-lhe um abraço, um beijo e uma gargalhada. Para ter sua confiança.


"O Beijo", Auguste Rodin
Ela se espreguiçou longamente, feito uma gata. Cada músculo do seu corpo esguio doía por causa do amor feito na véspera. Mas era uma dor dolente, gostosa, quase prazerosa. O lençol escorregou até seu ventre, espondo-lhe os seios muito brancos, de mamilos rosados. Ele olhava para ela, ainda deitado de costas. Beliscou-lhe um dos bicos, eriçados. Ela riu e se cobriu novamente: "Você não tem vergonha, não, seu doido?". Não, ele não tinha. Talvez, embora não o soubesse conscientemente, ele sentisse que aquele corpo já era dele, porque ela o dera de graça, como o maior presente que uma mulher pode ofertar a um homem. Ele a abraçou e fê-la virar-se de costas para ele. Beijou-lhe a nuca, a base do pescoço e a orelha. Todo o corpo dela despertou, arrepiado. 

Quando ela o ouviu pronunciar "vira", naquela voz rouca de desejo, ele já lhe havia tirado a lingerie, a camisola e qualquer escudo que ela ainda pudesse ter para se defender dele. Ele adorava o amor pela manhã, assim que despertavam, antes do café. Ele era louco e ela, ainda mais. Sua boca foi ficando cada vez mais seca, a sede sufocando-lhe a alma. Ela implorou: "Me beija". Ele lhe deu um beijo rápido e ansioso. "Não, eu quero mais. Me beija molhado, tô morrendo de sede". Então, ela sentiu a saliva dele umedecer-lhe os lábios, a língua e a garganta e, naquele momento, não haveria mais qualquer impedimento para ela se entregar a ele.

Se ele soubesse o que tudo aquilo significava para ela, teria lhe possuído com ainda mais vagar, mais ternura, como se aquela sempre fosse a primeira vez, e para lhe dar a ilusão, pelo menos por uns momentos, de que o tempo era amigo deles. Mas, pela manhã, ele era mais afoito, menos falante. Ela observava cada traço do rosto dele, cada trejeito, cada repuxar dos lábios e cada sorriso. Os gemidos baixos e roucos dele acompanhariam sua memória pelo resto do dia, da semana, do mês, se fosse necessário, tesando-a até o limite. Ele entrelaçou seus dedos com os dela e ela sentiu que ele queria tomá-la por inteiro, profundamente. E, sem reservas, entregou-se ao homem que amava há tanto tempo, segurando-o pelos cabelos, beijando-lhe as pálpebras, os lábios da cor de canela, a ponta do seu nariz reto e pequeno, o lóbulo macio de sua orelha, sorvendo o suór dele, colando-se àquele corpo que a virava de um lado, depois para o outro, esticando-lhe as pernas e os braços, sufocando-a, cansando-a, extasiando-lhe os sentidos.

***** 

"Espera um pouco, querido. Só mais um minuto". Ela puxou-lhe pelos braços e o obrigou a pousar a cabeça em seu peito. "Eu sei que você não gosta de colo, seu chato, mas faz isso por mim, vai, só uma vez...". Ele riu e deitou em seu peito, arfando de cansaço. A respiração dela era entrecortada, rápida e seca. Ela sentiu uma vontade imensa de chorar, não porque estivesse infeliz, mas porque ele fazia brotar nela sensações completamente desconhecidas, um universo infinito de sentimentos, um amor tão grande que machucava-lhe a carne por dentro, fazendo-a precisar verter lágrimas para não implodir. "Ei, pára com isso, lá vem você com essa melancolia...", ele disse, para quebrar o gelo. "Xiii, quieto. Escuta meu coração, olha o que você faz com ele...". Ele riu, mais uma vez. Mesmo que estivessem à beira do abismo, ele encontraria uma forma de sorrir. Suspendeu a cabeça e fez menção de se levantar. Ela o segurou mais uma vez, dessa vez com mais força, enlaçando-o com as pernas compridas. "Espera, fica comigo...". "Eu estou com você", ele falou sério, mas com a voz risonha. "Não, não é isso...". Ele deu uma gargalhada. "Fica comigo, vem comigo...".

Ele olhou bem dentro dos olhos dela, acariciou seus cabelos dourados e beijou-lhe de leve na boca, em seguida na testa, depois em uma das pálpebras. Ele não precisava responder à pergunta que ela não fazia. Havia um acordo tácito entre eles e, por mais que ela o quisesse levar consigo, para sempre, por mais que o último dia lhe doesse, ela não romperia aquele acordo. Ela precisava estar sempre feliz, para não preocupá-lo, precisava lutar contra as lágrimas, para que ele não pensasse que poderia estar lhe fazendo algum mal, precisava conquistar aquele coração escondido aos poucos, dando-lhe tempo para que ele nem percebesse que estava se entregando.

"Eu tenho que tomar uma chuveirada. Deixa eu levantar, minha linda". Ela afrouxou pernas e braços e, ainda na cama, observou-o ir para o banheiro, completamente nu. Ainda não havia se decidido se o achava mais belo de frente ou de costas... Ouviu a água do chuveiro, ouviu-o se ensaboando e, depois, se enxugando. Aquele vazio, o vazio da despedida, o vazio que a ausência dele deixava nela, já começava a apertar seu coração. Ele voltou, os cabelos pingando, a pele arrepiada de frio. "Não vai tomar banho, porquinha?". Ela deu um sorriso sem graça, mas ainda amando o senso de humor imortal dele. "Não. Também não vou descer pra tomar café agora. Tá cedo demais". "Então eu vou. Tô até com as pernas bambas de tanta fome. Você desce depois?". "Claro".

Ela permaneceu deitada, observando-o se arrumar. Ele tinha um ritual, uma ordem para fazer as coisas que a encantavam. Em poucos minutos estava pronto, fresco, jovial e lindo. "Vem cá, deixa eu te cheirar", ela pediu, tentando fazê-lo rir, tentando fazer a si mesma sorrir. "Mas eu não tô com perfume". Ela segurou a mão dele e sentou-se na cama. Beijou-lhe dedo por dedo, depois a palma da mão. Puxou-o para mais junto de si. "Por isso mesmo, seu bobo". Encostou seu nariz nos cabelos dele, e aspirou profundamente. Depois na nuca e, em seguida, no pescoço. "Sabia que você tem três cheiros diferentes?". Ele se levantou, rindo. "Você é que tem esse olfato muito apurado, mulher. Deixa eu descer agora".

Ela se virou de costas para a porta e ouviu-o fechá-la de leve. Ficou repassando as últimas cenas que protagonizaram juntos na mente, já antecipando a saudade que sentiria daquele homem. Adormeceu, com o corpo amolecido pelo amor, por poucos minutos, quando ouviu a porta se abrir. "E então, o café tava bom?", perguntou-lhe, sem se virar. "Cinco estrelas. Pão, café e manteiga". Os dois riram alto. Ela olhou para ele. "Pode ir. Eu vou ficar por aqui mais um pouco". "Tem certeza?". "U-hum". Na hora de irem embora, ela preferia que ele fosse em sua frente, sempre. Talvez porque tivesse, no fundo de sua alma, a esperança de que ele voltasse, no último minuto...

"Promete que vai descer pra tomar café?". "Promete que vai devagar e me liga da estrada?". Falaram juntos. Ela respondeu primeiro: "Você acha que eu vou perder um baita café da manhã desses?". Ele riu, dessa vez um sorriso mais triste. "Pode deixar que te ligo da estrada. Você vai ficar bem?". "Lógico que vou. Eu sempre fico bem", ela respondeu, fazendo um esforço sobre humano para não chorar. "Então, deixa eu ir". Ele veio até ela e deram-se um último abraço, um último beijo, em que ela sentiu o gosto do café forte que ele tinha tomado. Ele pegou sua pequena mala, a carteira e deu uma última olhada para o quarto, conferindo os bolsos. Ela não tirava os olhos do rosto dele, um segundo sequer. "Beijo, minha linda", ele disse, fechando a porta.

Danaide, Auguste Rodin
 Na solidão do quarto, ela suspirou e deixou as lágrimas contidas rolarem pelo rosto. Afundou o rosto no travesseiro em que ele havia dormido, sentindo o cheiro dele ainda vivo ali. Olhou para os lençóis amarrotados, com alguns fios de cabelo dele soltos. A cama ainda retinha um pouco do calor do corpo dele, da aura brilhante e tépida que o envolvia. Lembrou-se, então, de que o carro estava estacionado em frente ao hotel, e que poderia vê-lo da janela. Levantou-se depressa, enrolando-se no lençol. Foi até a janela, mas não teve coragem de abri-la. Sentiria vergonha se ele visse, lá de baixo, que ela olhava para ele. Colou o rosto no vidro frio e viu-o de relance, suas costas largas, os cabelos pretos, as passadas longas e decididas. Acompanhou-o com os olhos até onde a rua fazia uma curva, quando não pôde vê-lo mais. Desabou numa cadeira e olhou para o teto. Será que um dia poderia ter certeza de que ele voltaria? Será que, um dia, os dois não precisariam voltar para lugares diferentes, mas, sim, para o mesmo lugar, e juntos?

Ela não ficou no quarto por muito tempo. Sem ele, nenhum quarto de hotel fazia sentido. Tomou uma chuveirada, arrumou-se, pintou os olhos e desceu para o café. Sentou-se à mesa que imaginou que ele teria usado. Tomou um café com leite quente, para despertá-la. Ainda tinha uma longa estrada pela frente. O dia explodia em um azul anil, e fazia calor. Por dentro, sem ele, sua alma tornava-se cinza, da cor do chumbo, e tudo era tocado por um frio siberiano. Até que ele voltasse, para fazê-la colorir, brilhar e exultar de alegria novamente.

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