15 de outubro de 2010

Flicts

O Ziraldo escreveu Flicts em 1969 e, por ele, ganhou em 2004 o Prêmio Internacional de Literatura Infanto-Juvenil Hans Christian Andersen. O livro, hoje, é praticamente uma raridade; você não o encontra para comprar em livrarias e muito menos pela internet. Talvez seja possível encontrá-lo num daqueles sebos entulhados em Copacabana, não custa tentar.

Mas hoje eu estou feliz porque ganhei "Flicts", este que foi o livro da minha infância. Minha prima saía para dar aulas na escolinha de São Féliz com minha tia e eu ficava com Flicts, horas e horas lendo a história e me encantando com as gravuras. Eu devia ter, no máximo, nove anos.

Flicts é uma cor, um bege esquisito, meio ocre, meio cor de burro quando foge, meio barro seco, totalmente Flicts. O livro começa assim: "Era uma vez uma cor muito rara e muito triste que se chamava Flicts. Não tinha a força do Vermelho, não tinha a imensa luz do Amarelo, nem a paz que tem o Azul. Era apenas o frágil e feio e aflito Flicts". 

Rapaz, como eu elucubrava com o Flicts! Não, mais do que isso: aos meus nove doloridos anos, eu ERA o Flicts. E o genial do Ziraldo é exatamente isso: falar para a criança que não apenas ela, mas essa cor também, é frágil e feio e aflito. O livro que eu lia era mais novo do que este que minha prima me deu hoje, antes de eu voltar, para depois voltar de novo. O dela, que tem minhas impressões digitais gravadas, minhas lágrimas juvenis que manchavam as páginas e a energia que eu fiz brotar e plantei em Flicts, este se perdeu na escolinha. Mas Luciane sempre tem um presente para mim na hora da partida. E vai que fuça daqui, fuça de lá e, do fundo de um armário cheio de coisas antigas e amadas, Lu encontra a edição de 1976, com capa dura, assinado "Tia Ana". A vida roda, roda e não avisa, tudo para chegar no mesmo lugar, mesmo que por outras mãos. 

Quando eu pus minhas mãos em Flicts hoje e o reli, pela milionésima vez, a emoção, os sentimentos, a lembrança, tudo foi o mesmo de há 23 anos. O livro ainda tem aquele cheiro de páginas antigas, esse cheiro de livro velho, surrado, lido e relido que não tem preço. E, aos 32 anos, descubro que ainda sou Flicts. Na verdade, muito do que a gente é hoje, burro velho, já se define lá atrás, quando somos apenas brotos a viscejar. A forma é a mesma, a essência já vem meio que pronta, só vai se moldando à vida com os anos, se ajeitando, aparando arestas, encontrando e desencontrando outros Flicts pela estrada afora. 

No livro, Flicts corre o mundo a buscar amigos, uma família, um par, ecos para a sua voz, reflexos para sua imagem. E não encontra, porque todas as outras sete cores do arco-íris já estão completas e fechadas em seu círculo cômodo e conveniente de denominações. É só Flicts que não tem espaço no mar, no sinal de trânsito, nem em nenhuma bandeira nacional ou brasão. Nem nas inconstâncias do mar, que pode ser Vermelho, Cinzento como chumbo, Negro ou Azul, Flicts se encontra. Porque Flicts é pura constância, pura imobilidade. 

Ziraldo escreveu essa obra, hoje traduzida para mais de 20 idiomas, e captura a alma da gente, criança grande ou pequena, no final da história. Frustrado e cansado de não se encontrar no mundo, Flicts olha para longe, e vai subindo, subindo, até sumir. E, no desapego, no esclarecimento do amadurecer, Flicts dá um recado para a gente: no céu, a lua pode ser vermelha no poente, azul com dia claro e amarela nas noites sem nuvem, mas, de pertinho (e só o astronauta sabe dessa verdade), a Lua é Flicts. E eu sou a Lua. Você é a Lua. Somos todos, em nossa solidão, inquietude e inadequação, únicos, gigantescos e mágicos como a Lua. 

Minha gratidão por Luciane ter guardado tesouros como Flicts e, mais, ter a confiança de dá-los para mim, é incomensurável. Outro presente dela, três discos de vinil que também acompanharam minha infância na roça, enfeitam hoje minha estante, até o dia em que eu encontrar alguém que os digitalize para mim, para que eu possa ouvi-los em CD. Maldito passar do tempo...!

Com os discos, eu ouvia poesias cantadas e narradas por Irene Ravache e Elba Ramalho, histórias da Figueira, da Coca, de Aninha e o Príncipe, da Viuvinha, da Chácara da Filha do Rei da Espanha, do Rei que atirou seu anel ao mar, do piá que é carregado pela andorinha para o Jardim do Céu, "onde sempre é meio-dia, e não se morre outra vez". Aos nove anos, eu nem sabia o que significava "piá", nem entendia as metáforas lindas naquelas histórias. Eu apenas ouvia cada uma daquelas faixas e ia me apaixonando por elas, me encontrando nelas, amando toda aquela poesia que, só hoje, ao ter os discos novamente, vejo que são de Manuel Bandeira, Mário Quintana, Drummond, Vinícius, Henriqueta Lisboa,  meus favoritos até hoje. Os discos, Flicts, a panelinha de ferro do Vica, a caneca de vidro pesada de tio Dudu, o relógio Ansonia de vovô, o baú de minha bisavó, as fotos de "Moleque Anguilo", enfim, todos tesouros meus, tão preciosos porque falam de mim hoje o que eu nunca deixei de ser. 

Ainda em tempo, numa noite de pizza com meu tio e sua namorada, que ele insiste em dizer que não vai deixá-lo "amarrado" jamais, visitei a Casa de Cultura de uma cidadezinha "de gente acolhedora", segundo a placa de chegada, chamada Aperibé. Lá, encontrei um espaço de honra ao Dr. Laerte, este que foi o dentista de meu pai até morrer em Itaocara, e uma farmácia de manipulação original, do final do século passado. Claro que tirei fotos. Você não tiraria? 

Nessas coincidências, nas relíquias de família, sou menos Flicts e sou mais Roberta Rohen. Roberta Raízes, deveria ser este o meu nome, embora eu não tenha encontrado ainda meu pedaço de terra, só meu, para fincá-las. Enquanto isso, vou me (re)encontrando aos poucos, em antiguidades que são jovens porque, até hoje, têm valor, história e significado, capazes de lembrar a gente aquilo que o Nietszche já falava e pelo que foi cultuado: "Torna-te aquilo que és". 
   

3 comentários:

  1. eu me derreto pelo Ziraldo e acabei de descobrir por que nos damos bem: é essa essência Flicts!!

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  2. Mi, eu + você = Flicts + Crases + Charlie Brown

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  3. Os discos que você comentou estão todos em CD. Eu tenho todos eles. Só pbuscar na net. O nome é "Estórias , cantigas e canções de ninar", volumes 1 e 2

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