9 de outubro de 2010

O Avestruz


Ele não havia sido um avestruz a vida toda. Na verdade, já fora um beija-flor, um girassol, um tapete com os dizeres "Benvindo ao Lar", uma ama de leite, um chapéu de palha, unhas postiças à venda no bazar da esquina, um telefone antigo, uma calopsita com penugem vermelha no topo da cabeça, um índio com totem de urso... 

Ele era o que o momento exigia que ele fosse. Não, não é bem assim a ideia. Talvez o momento, e a vida, e as pessoas não exigissem absolutamente nada dele, mas ele pensasse que agir feito camaleão fosse uma maneira mais segura e conveniente de levar a vida. E é sobre isso essa história: conveniência.

O fato é que, naquele dia, ele resolveu ser avestruz. O céu estava azul demais para o cinza opaco que crescia em seu peito, e a luz que entrava pelas janelas incomodava-lhe demais os olhos, tanto ao ponto de ele nem se lembrar mais de como abri-los. Ele havia lutado muitas batalhas num período relativamente curto de tempo. E não ganhara nenhuma delas. Estava sozinho, cheio de uma solidão doída, num lugar ao qual não pertencia, sozinho, embora cercado de pessoas em quem tentava se encontrar, enxergando apenas fragmentos de si mesmo, como a imagem refletida num espelho quebrado. 

Ele podia, naquele momento, convenientemente, ter virado um bode com chifres fortes e grossos, para sair à luz do dia e dar cabeçadas, se achasse que isso fosse necessário. Ou uma garça branca, para sobrevoar o campo de batalha e encher os olhos dos soldados de assombro e maravilha, porque uma garça de verdade, e não aquelas que muita gente coloca nos jardins, é uma ave rara, tão rara que nem está no jogo do bicho. Poderia também, muito convenientemente, optar por ser uma sacola de supermercado que alguma dona de casa encheria com vidros de ketchup e batatas chips para os filhos a quem ele, em forma de sacola já vazia e largada na mesa da cozinha, poderia ficar contemplando, rindo-se de suas brincadeiras. 

Mas, convenientemente, naquele dia, ele decidiu ser avestruz. Mas não antes de tentar se esconder durante horas debaixo dos cobertores, a guisa de travesseiro. Entretanto, os cobertores não lhe proporcionavam a escuridão que ele buscava, uma escuridão que parecia vazar de dentro dele, pelos olhos, pelos poros, pelas unhas, um breu que se alimentava não apenas dele, mas do espaço que ele ocupava.

Cavou um buraco bem fundo no jardim. Nem se importou de, nesse processo, arrancar as poucas margaridas silvestres que brotavam ao redor. Àquela altura, ele já estava em guerra consigo mesmo, e não pretendia vencer. Ele queria mais uma derrota, precisava sentir dor. Em seu pensamento, uma dor a mais o anestesiaria, como no revés de uma silva de chibatadas bem aplicadas: dê um espaço longo de uma chicotada para a próxima. Assim, a dor da vítima é maior, porque o espaço entre as chibatadas permite que os nervos, contraídos, relaxem, abram a guarda, por assim dizer. Ele precisava de mais dor, para sentir menos dor. Ele se recusava a permitir que a carne cicatrizasse, com medo de que, renovada, a pele fosse esfolada novamente.

Enfiou primeiro o bico, depois a cabeça de olhos esbugalhados e o pescoço comprido e fino no buraco. Lá no fundo era escuro, frio e úmido. Ele podia ouvir as batidas lentas do coração latejar em seus ouvidos. E doía. Doía tanto ao ponto de lhe anestesiar os sentidos, deixar seu corpo entorpecido, sonolento, fugidio. Ali, ele não precisava se preocupar com as derrotas, com a batalha que deveria continuar, com o trabalho que o aguardava depois da guerra, com o apetite, com a sanidade. Ele era todo terra e pedra, imóvel, tentando boiar num vazio anti-gravitacional. E não esperava que nada, absolutamente nada de positivo lhe acontecesse naquele dia.

Mas o telefone, lá de dentro da casa, tocou. Não havia ninguém mais para atender. Ele não podia ignorar aquele chamado. Um telefonema é como uma visita que bate à sua porta. Poderia ser uma visita esperada há anos, uma visita que ele não gostaria de receber, mas, ainda assim, uma visita. E, talvez, aquele telefonema aliviasse sua dor...

"Alô...", ele atendeu, incerto. E era o sol, em pessoa, querendo lhe falar. O avestruz, assustado com o brilho repentino que vazou da voz lá do outro lado da linha, sorriu. Seu primeiro sorriso daquele dia longo, cansativo e vazio. E o sol estava num daqueles dias em que queria conversar, contar novidades, saber novidades, dar conselhos, rir e chorar com ele. O avestruz esticou seu pescoço enorme e, durante a prosa, nem percebeu que havia saído do buraco e que ali, sentado à janela, era bem mais confortável. 

O sol lhe contou uma ou duas histórias, eles riram juntos e o astro prometeu ligar outra vez ainda aquele dia, antes de se por no oeste. O avestruz ponderou, nada convenientemente: "Se o sol prometeu, vai cumprir. E se vai me ligar de novo, como vou ficar lá no jardim, enfiado no buraco? E se eu não ouvir o telefone tocar? Não é todo dia que se recebe uma ligação do sol...". Então, o avestruz optou por ser sensato, ao invés de conveniente e auto-piedoso. Foi até o jardim, cobriu o buraco com a terra fofa ao redor e, envergonhado, replantou as margaridas. Quando voltou à casa, viu seu reflexo rapidamente no espelho. Já não era mais avestruz. Era apenas ele mesmo. E a sensação de ser nada, apenas ele, era boa. 

Algum tempo depois, o sol lhe ligou de novo, lá do poente. Dessa vez, o próprio sol reparou, pela voz do amigo, que ele nem era mais avestruz. Sentiu, à distância, a mudança de atitude daquele "ex-bicho". Ele sorria, permitia que a esperança lhe entrasse pelos olhos, deixava a pele respirar e as feridas cicatrizarem. O sol raiaria no dia seguinte, e no próximo, e sempre, até o fim dos tempos, então não haveria como se esconder por muito tempo. Não haveria meios nem motivos para isso. 

Podia não ser conveniente, claro. Esperança não é conveniente quando se pode perder de novo. Luz não é conveniente quando o escuro há de chegar um dia. Recuperar-se de uma batalha é inconveniente se você tem medo de lutar outras batalhas e sair em frangalhos. Mas, naquele dia, ele compreendeu que nem sempre o conveniente é sensato. Muitas vezes o que convém é apenas uma maneira de se esconder e se trancar dentro de si mesmo, fugindo da vida e do mundo, como se fosse possível fugir de gigantes como esses. A vida não nasceu para ser conveniente. Ela é imprevisível e exige de seus súditos maleabilidade, humildade e reflexos rápidos. Foi preciso que o sol em pessoa quisesse lhe falar para que ele se lembrasse da regra mais básica da vida: umas se ganha, outras se perde. O resto é caminhada, luta, tempo e pó. É assim para ele, para o sol também, para as margaridas, para você e para mim.          

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