26 de outubro de 2010

codinome: mulher


Danaë, Gustav Klimt
Ela sonhara com ele aquela noite. Mais uma vez. E, às duas da manhã, num acesso de saudade e com uma vontade latejante de falar com o amante, despejou Morfeu em segundos de sua cama. Levantou-se, irritadiça pela insônia, tomou um copo d'agua gelada e pegou um bloco de rascunho amarelado e uma caneta velha que viviam na gaveta de seu criado-mudo, para escrever para ele. Ela jamais se imaginara capaz de fazer isso por alguém: condensar seu pensamento, suas idéias e o seu querer no tamanho diminuto de uma carta de amor. Ela, que sempre fora pura verborragia. E isso era um elogio e tanto à pessoa esguia, morena, bem humorada e sequiosa que ele era. A carta lhe valeu três folhas de rascunho, quarenta minutos de suor e uma insônia gostosa e gozosa a pensar no corpo dele e em sua alma, a querê-lo: por sobre, com seu peso cálido que pressionava e preenchia; por baixo, com seus olhos enevoados a contemplar a vara que lhe tesava; por trás, com seus braços fortes que lhe alocavam no prumo; ao avesso, dentro e fundo, sempre.

O amor feito sozinha já não lhe bastava mais. Tocar-se com as mãos já trêmulas, rolar na cama, embolar os lençóis com as pernas compridas em frenesi e atirar as cobertas longe, morder os lábios, salivar, nada disso aplacaria um desejo que, na solidão da madrugada, tomara-lhe de assalto, assustando-a, aquecendo seu corpo a começar pela garganta. Um calor que, da traquéia, escorria para o torço feito lava, eriçava-lhe os bicos escuros que, de tão rijos, chegavam a doer, revoltava seu estômago, tomava seu ventre e desorganizava-lhe a morada de Vênus. Morada que era também a dele, que se arrepiava, e se preparava, e se umedecia, e se calava. Só para esperar por ele. Que não chegava...

A moça suspirou, então. Um suspiro entrecortado, porque sua respiração havia mudado. Estava acelerada e seca. Ela apagou a luz do abajur, arregalou os olhos no breu do quarto, fitou o teto e, o que viu, foi um filme que ela mesma dirijia, a reprise dos dois, numa cavalgada que lhes tirava o fôlego. Era a lembrança dos dois que a fazia compreender como e porque o sexo podia ser tão inebriante, viciante e compensador. Com ele. Suspirou mais uma vez. E outra. E tentou apaziguar as batidas do coração, desembalado, descompassado, naquele peito que o queria sem limites.

Levantou-se mais uma vez, andou pela casa às escuras, lavou o rosto. Encarou sua imagem no espelho. Sorriu, cúmplice de si mesma, porque estava corada, as bochechas avermelhadas e os lábios inchados, desejosos. Seu pescoço, a pele branca logo abaixo das clavículas e a carne firme do abdômem também estavam rosados; suas unhas, a pouco, cravaram-se ali, a fantasiar que eram as dele. Quatro da manhã, um galo no quintal do vizinho cantou seu cocoricó temporão. O trabalho no hospital a esperava em poucas horas, mas ela ainda sentia o aguilhão do desejo. Por ele. E ainda mais, inacreditavelmente. Deitou-se, acabrunhada, nervosa, inquieta. Morfeu, seu inquilino desprezado, só retornaria muitos minutos e esfregares frustrados depois. Ela, então, deu uma risada alta no escuro do quarto abafado. Balzaquiana, tão culta e serena, viajada e independente, dona de si, há tempos tão enclausurada e fria, programada para seguir a vida num campo de solidão estéril, ela se redescobria, agora, uma serva lasciva, febril, sonhadora e ambiciosa. Uma serva dele, de pleno e bom grado.

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