21 de outubro de 2010

Eritrinamigas


"Melancolia", Edvard Munch
Tem dias em que você se olha no espelho e pensa: "Puxa, esse espectro não pode ser eu. Deve ser meu avesso...". Hoje foi um desses dias. Eu estava inteira do avesso. E esse avesso pinicava, machucava e arranhava por dentro, como feltro, saco de areia. Quando você está do avesso, curiosamente o mundo fica do avesso também. Tudo o que você vê é como um quadro horripilante do Edvard Munch. Você corre da própria sombra, sente um sono apático, ouve sua voz como que saindo de dentro d'água, olha para os dedos de sua mão e eles lhe parecem velhos e inúteis galhinhos secos e quebradiços. Honestamente, não querendo culpar o cosmo nem divindade alguma, mas, num dia como esse, Deus bem que podia dar uma forcinha a mais e nos transformar em nuvem, pelo menos até o avesso da gente ir embora e o ego voltar ao seu centro. 

Então eu descubro, ou melhor, redescubro um presente da natureza chamado eritrina candelabro. Mas só vou falar da eritrina mais tarde. Quem me deu esse presente, hoje, foi minha pequena Miss Sunshine, essa que agora teimo em chamar de "guerreira da luz". Alguém que me conheceu aos 14 anos, me chamava de Roberta "osso duro de" Rohen, era a mais baixinha de nós e tinha os dedinhos das mãos mais fofos desse mundo; dedos míudos, com unhas alongadas e que não deixavam ossos à mostra. Mãos de uma mulher que não vai envelhecer.

Éramos um grupo de quatro meninas se descobrindo gente, uma trupe gozada de se observar, àquela época. Ivana, uma morena esguia, de olhos rasgados, que ria o tempo todo e cativava quem quisesse em minutos. Ela era a própria definição de Zen. Tão em paz consigo mesmo e com o mundo que, às vezes, a gente a chamava de "lerda". Só para chocar a burguesia, Ivana se tranquilizava ainda mais. Entre nós quatro, Ivana parecia uma libélula: levíssima, longilínea, sempre com calças compridas molengas ou saias longas, camisetas de alcinha, cabelos pretos soltos e lisos e sua cor de jambo que encantava quem a enxergasse mais de perto.

Flávia era a primeira da turma, e sempre a primeira nos malditos "simuladões". Ela era inacreditavelmente tão boa em matemática e física quanto em biologia e português. Flávia foi, talvez, uma das pessoas mais disciplinadas que eu já conheci. A irmã dela era fisioterapeuta na época, e Flávia gostava de academia e malhação. Há quase vinte anos, só existia mesmo ginástica aeróbica, e era nisso que Flávia fugia de si mesma e da imagem de "gorda" que só ela via. Ela morava num sítio afastado da cidade, e amava uma comida árabe chamada tabule. O que mais me encantava na Flávia era que ela tocava piano, cantava e adorava Educação Física. Foi ela que me ensinou que, para cantar bem, você deve controlar seu diafragma. Não me esqueço de uma frase de Flávia: "corpo de mulher a gente vê, mesmo, é na calça jeans justinha". Eu só usava moletons molambentos naquele tempo e, para dizer a verdade, nem me via como mulher, então, ficava tudo no "elas por elas". 

Eu era a terceira da sala, e a terceira nos "simuladões". Não tinha jeito: as exatas acabavam com a minha raça. Das quatro, vejo hoje, era eu quem mais precisava de colo. Eu tinha cabelos compridos que não penteava quase nunca, usava uns tênis surrados e moletons enormes, não passava maquiagem alguma, era arisca feito um cachorro-do-mato e, o cúmulo para se postar num blog, levava um osso da canela de um boi na mochila. Esse osso era pesado e maciço, e eu o havia encontrado na roça com meu pai. Ele achava um barato o fato de eu levar aquilo para o colégio, dizendo que espantava a molecada e, se fosse preciso, tinha coragem de cobri-los de "ossadas". Olhando para trás, não me lembro de ter batido em ninguém, efetivamente, com aquele osso. Só o brandia para os moleques, fazia cara de má e, no máximo, perdia a chance de paquerar no colégio. Naquela época, eu achava que inflexibilidade era a maior das virtudes. E inflexível, teimosa e turrona eu era.


Milene "Miss Sunshine" Portela
Para completar esse "quarteto fantástico", entra a garota, hoje mulher, que eu chamo de "guerreira da luz", Milene. Era ela sempre a segunda da turma e a segunda nos "simuladões". Só não era a primeira porque, acreditem, Flávia era realmente ligada numa tomada de alta e perigosa voltagem. Formávamos um quarteto realmente ímpar: Milene, de Miguel Pereira, Ivana, de Vassouras, eu, de Mendes e Flávia, de Barra do Piraí. Ivana era católica, mas não costumava ir à igreja. Flávia era da Igreja Batista. Milene, kardecista e eu, teimosa feito um burro, adorava dizer que era atéia. Não me lembro exatamente como nos juntamos. Mas me lembro nitidamente dos recreios, de como ficávamos esperando os ônibus que nos levavam de volta para nossas cidades, sentadas na calçada da escola, Ivana mechendo em nossos cabelos, eu com um pacote de biscoito cream-cracker para devorar, Flávia lendo sua agenda e Milene brincando de um jogo de palavras que começava com a palavra "nuvem". 

Naquele tempo, o tempo era outro, parecia passar mais devagar, e ninguém ficava falando em vestibular e carreira profissional o tempo todo. Acho que nenhuma de nós via um futuro tão distante a esse ponto, embora já despontassem em nossas almas nossos primeiros talentos. Ivana era habilidosa com as mãos, Milene com as palavras, Flávia com tudo e eu, bem, eu era ainda um patinho-feio fora da lagoa. Mas escrevia um bocado, gostava de teatro e lia como ninguém. Então surgiu uma parceria imbatível no colégio, principalmente nas cerimônias especiais, como dia dos pais, mães, professores, natureza, índio, etc e tal. Milene escrevia os textos de homenagem e eu os lia para a platéia. Os textos de Milene eram de arrasar: curtos, enxutos, transbordando de sentimentos. Os meus eram longos demais, melancólicos demais, cheios de elucubrações que ninguém mereceria ouvir num dia especial. Então, a diretora anunciava: "Agora é a hora da homenagem do nosso colégio, com um texto de Milene Portela e apresentação de Roberta Rohen". Nos bastidores, a gente se abraçava, roía as unhas de nervoso e soltava gritinhos histéricos. 

A última homenagem que fizemos, em parceria, foi na verdade um nó na minha vida, e que acabou por separar nosso quarteto. Era agosto, Dia dos Pais. Milene escreveu o texto mais lindo que você possa imaginar, e eu o li com toda a emoção e devoção que eu possuía então. Mas meus pais não estavam na platéia. Eles tinham ido à roça, para uma visita rápida. Quando terminei a leitura e fui ovacionada por pais e mães que choravam de emoção, chamei Milene que, pequenina, sentava-se em uma cadeira logo a minha frente. Eu queria que ela recebesse aqueles aplausos também, principalmente porque as palavras que eu interpretei eram dela. Abraçamo-nos, Milene e eu, ela um chaveirinho risonho, com covinhas nas bochechas e cabelos cacheadíssimos. Eu, uma espiga de milho comprida, cabelos soltos e um arco de madrepérola com laço na cabeça. Éramos jovens, inatingíveis, cheias de esperança e com uma vida perfeita pela frente.

Mas então, de volta a minha casa naquele mesmo dia, descobri que meus pais não tinham chegado de viagem, mas sofrido um acidente gravíssimo na estrada. Minha mãe, sempre querendo superar os próprios limites, adormeceu por segundos ao volante, e o carro voou de uma pirambeira de dez metros. Só parou porque arrancou o tronco de um eucalipto do solo. Meu pai fraturou cinco vértebras, perdeu três dentes, voltou ensanguentado para casa e ficou um ano sem andar. Minha mãe, para carregar a nós todos no colo, saiu sem um arranhão. E eu, então, morri em vida.

As meninas vinham visitá-lo frequentemente. Meu pai adorava Milene, Flávia e Ivana. Eram como filhas para ele. Eu virei um espectro, não estudava mais, não brincava, não sorria, não escrevia nem lia para ninguém e fui entrando cada vez mais para dentro de mim mesma, num universo de breu e gelo. Quando meu pai se recuperou, aí foi a vez de ele tomar conta de mim, tentar me encontrar naquele corpo pequeno e encurvado no que o meu havia se transformado. Foi a vez de as meninas virem me visitar, porque eu já nem saía mais de casa. O tempo passou, nós nos formamos, mas eu não compareci à cerimônia de formatura do 2° grau. A amizade que tínhamos rachou ao meio porque talvez eu tenha me rachado ao meio, porque a coluna de papai rachou-se, porque, aos 15 anos, a gente não sabe como preservar uma pérola. Nunca mais vi Flávia. Ivana foi para Juiz de Fora e ainda tem bastante contato com Milene. Eu a vi, Ivana, há uns dois anos, no Carnaval. Continua a mesma libélula de sempre. Milene eu vejo no orkut e, mais recentemente, nos textos lindos que ela ainda escreve no http://papelpequeno.blogspot.com/, e ela me vê aqui, nas histórias que eu conto. 

Milene dá aulas de inglês, como eu mesma o fiz por dez anos. E também é arquiteta, escritora, ama gatos e cachoeiras e vai-se saber o que mais essa menina faz. Já viajou o mundo, como eu, e voltou. Ainda não nos vimos, desde os nossos 17 anos, mas nossa parceria é a mesma daqueles tempos. Hoje eu não sou mais inflexível, nem teimosa e muito menos turrona. A vida enverga muito a gente, não há cedro ou cerejeira que resistam. E também não digo mais que sou atéia. Eu acredito em comunhão de almas, e é isso que tenho, mesmo e principalmente à distância, com a minha "guerreira da luz". 


Eritrina Candelabro, vulgo "mulungu vermelho"
E hoje, sentindo-me um espectro, Milene me diz que eu me pareço com uma tal "eritrina candelabro", que vem a ser a árvore favorita dela. Google it, of course, my horse. Pesquisei e descobri uma árvore que eu também adoro, não tanto quanto ipês, confesso, mas que, veja como são cíclicas as veias da vida, vem a ser a árvore que meu pai mais gosta. Quando viajámos, eu e ele, papai sempre me apontava aquelas árvores nuas, desfolhadas e cobertas de flores vermelhas que, à distância, a gente confunde com o ipê-roxo, e me dizia, animado: "Olha, Momó, um mulungu!". A eritrina candelabro, a árvore favorita de minha amiga, é o famoso mulungu do litoral, que meu pai sempre insistia em me mostrar em nossas viagens, para tentar colorir de vermelho o meu dia cinza. Hoje, Milene, quem coloriu minha noite com a sua eritrina foi você. Para lembrar que ninguém é espectro para sempre, ela escreve assim:

"Você é mesmo um ipê branco, ou melhor, uma eritrina candelabro, a árvore de que mais gosto. Na floragem, fica sem uma só folha, exibe galhos nus com flores grandes nas pontas, imitando um candelabro de luz vermelha. É um bonsai brasileiro, orgulhoso das flores que carrega, sem vergonha de não ser perene. Coisa boa saber que vc tem tantas luzes vermelhas distribuidas aqui no blog". Milene Portela

5 comentários:

  1. so you're a basket full of surprises, hum?
    eu vou comentar sim minhas lembranças, já que essa moça espiguenta aí foi mexer em vespeiro! te meeeete!

    (CLARO que minhas lembranças e atualizações da Milene vão por e-mail, aff...!)

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  2. Não tem graça! Tem que postar no papel pequeno, sem graça!

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  3. não posso postar no papel, é way too confidential!!!! =P

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  4. inclusive já mandei! pense numa bomba!! =O

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  5. Ai, carái! Tô indo lá ver =O

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