23 de outubro de 2010

Dia D(ele)

Escrevo essa crônica sob encomenda, por assim dizer. Um velho amigo, que não vejo há meses - mas que, como o cheiro de mar ou o cheiro da terra molhada de chuva, nunca sai da minha memória - encontrou-me por acaso no MSN. Sou tecnófoba assumida, mas, para uma ou outra bela coincidência, como uma conversa com um velho amigo, tiro o chapéu para as conveniências do mundo digital.

A conversa durou pouco mais de cinco minutos. Acredito que ambos estávamos por demais entediados para manter um papo através da tela de um computador. Como sempre, eu havia acessado o messenger com o status invisível. Assim, vejo quem está de bobeira na rede, ninguém me perturba e, se algum amigo por acaso estiver a fim de prosear (não mais do que cinco minutos), falo "oi". A reação desse meu amigo me rendeu uma boa gargalhada: "Como assim? Um fantasma invisível, falando comigo?". Claro que a colocação dele, naquele momento, era de duplo sentido: como um fantasma, eu estava de fato "invisível" para ele e, como uma alma penada, ando sumida e enclausurada há tempos. 

Assim que dissemos logo nossos "oi, nada de novo, tudo na mesma;  o que estava bom, continua bem, o que estava ruim, piorou um bocado", Carreiro - pois assim gosta de ser chamado esse meu amigo há quase 20 anos - disse que tinha uma coisa bela, triste e simbólica para me contar, algo que somente eu poderia entender. É aquela velha coisa de sempre. Do mesmo modo que um caipira sente o cheiro de outro caipira a quilômetros, uma alma velha e melancólica também fareja outra, mesmo que através dos bits e bytes da internet. Mas, antes de contar sobre esse fato belo, triste e simbólico, preciso falar um pouco de meu amigo.

Carreiro é um sujeito difícil de se definir, ou melhor, tornou-se indefinível lá pelos seus vinte e poucos anos, quando, como toda criatura que lê Goeth antes dos trinta, pirou o cabeção, pintou os cabelos de verde, pôs lentes de contato azuis, furou-se com piercings só Deus lembra onde, começou a frequentar raves e, óbvio, tatuou um escorpião nas costas. Antes disso, Carreiro era apenas o Marcelo, um garoto que escrevia diários e amava a simbologia de Peter Pan, ouvia música clássica, lia livros que adultos não lêem porque são chatos demais, sofria de uma apaixonite aguda e platônica por uma prima loura e gélida, era excelente aluno, disciplinado e politizado, e curtia quadrinhos do Will Eisner e todo o universo Marvel, basicamente. 

Quando você segue apenas uma linha em sua vida, fica mais previsível, mais facilmente definível. Mas, quando abraça a rebeldia eclética, que penso ter sido o caso desse meu amigo, sua história pode, de fato, render uma crônica e, dependendo do que tiver alcançado ou não, até um bom livro. Marcelo, oops, Carreiro sempre amou o passado, os museus, bibliotecas empoeiradas, mapas, geopolítica e, sobretudo, História. Na época, entre adolescentes típicos que nunca olham para trás, não lêem mais do que o horóscopo de uma revista da mãe e estão mais interessados em farra do que em construção de identidade, meu amigo se sentia um alienígena, um velho jovem (ou um jovem velho...?). Tanto que, aos 15 anos, ele afirmava que seu destino seria envelhecer sozinho, no fundo de uma biblioteca mal iluminada, cercado de seus livros amados. Claro que qualquer fatalismo aos 15 anos deve ser positivamente ignorado, mas, naquele tempo, ele realmente acreditava que era a própria encarnação tupiniquim de Werther e seus sofrimentos. 

Mas então, aos vinte anos, no auge da tentativa de auto-descoberta, Carreiro sepultou seu passado amado e foi fazer faculdade de Informática, ou seja, a negação da História e do antigo, porque Informática é puro progresso, futuro e renovação. Nesse meio tempo, arranjou um trabalho na área que lhe pagava tão bem que ele foi conhecer a Europa, num mochilão. Isso mesmo, Europa, o velho continente, o melhor lugar para visitar museus, bibliotecas, ruelas e becos milenários e toda essa velharia que ele nunca deixou de amar. Não tente fugir de quem você realmente é. Inútil tentativa, sempre. 

Sonhos sepultados não morrem simplesmente, sabe. Eles ficam adormecidos, umedecidos pela terra e pelas lágrimas que invariavelmente derramamos por eles. Mas nunca deixam de ser sonhos, estão sempre ali, sussurrando aos nossos ouvidos, dizendo: "volte por mim...". E Marcelo voltou. Ele precisava se reencontrar, não andando para frente, mas retrocedendo, refazendo passos que pudessem levá-lo para aonde ele seria naturalmente "ele", e nada mais.

Com mais de vinte e cinco anos, meu amigo entrou para a Faculdade de História, seu sonho antigo e eterno, o lugar do qual ele jamais deveria ter fugido. A vida, às vezes, é pura e simplesmente bizarra. Você dá voltas e voltas, bate a cabeça no mesmo muro mil vezes, pega os desvios mais inusitados da estrada, tudo para voltar e chegar às origens. Tem gente que não anda, nem erra tanto para alcançar seus objetivos; é como se a linha de suas vidas tivesse sido traçada à régua, um risco reto, sem muitos contratempos. Mas tem gente, como esse meu amigo, como eu, cujas linhas da vida foram desenhadas por um compasso mal ajambrado, com uma haste maior que a outra. Meu amigo se declara ateu e diz não acreditar em destino. Mas eu acredito. Passei a acreditar. E penso que as réguas e os compassos da vida estão em posse da gente, sim, mas em grande parte de uma nebulosa no espaço, algo que comanda o caos e a ordem, tanto do Universo quanto de nossos pequenos e insignificantes umbigos.

Para retroceder nessa estrada e fazer de seu sonho um objetivo real e palpável, Marcelo teve que se despersonalizar pra lá de metro, como a gente diz lá na minha terra e ele, ao ouvir, franze as sobrancelhas de repulsa. Mas isso só acontece porque ele acredita ser 100% intelectual quando, um dia Marcelo ainda vai aceitar ou descobrir, ninguém é 100% coisa alguma. Nesse processo de despersonalização, meu amigo teve que voltar ao jugo dos pais, escolher se comprava um pão de queijo ou pegava o metrô com o dinheiro que tinha na carteira, se sentir como um alienígena novamente, dessa vez com certa razão, por ser o mais velho de sua turma e estudar para correr contra o tempo, sempre o maldito tempo perdido.

Agora ele já se formou. Poderia ser professor e, com a animação, lucidez e o amor com os quais conta as histórias da História, incentivaria centenas de alunos a prezar o passado também. Mas o meu amigo quer estudar mais. Ele quer ser pesquisador, acadêmico, bacharel, eu não entendo muito mais dessas coisas. Já faz dez anos que me formei, nunca exerci a profissão formalmente e, honestamente, prefiro cursos profissionalizantes a universidades (eu nunca curti muito o ambiente acadêmico. Morria de tédio e vontade de pegar logo o canudo para sumir da PUC). Mas, se eu tivesse que entrar numa sala de aula novamente, como aluna, seria para assistir a uma aula sobre o Oriente Médio, com o Professor Carreiro. Mas, não tem jeito. Ele ainda quer dar muitas e muitas voltas até chegar aonde precisa estar. 

Agora chega a hora de contar o fato belo, triste e simbólico. Um dos sonhos de Marcelo é o doutorado. Sinto, lá em minhas entranhas, que esse sonho está a poucos passos dele, mas não foi dessa vez. Às vezes, ou melhor, quase nunca nossos sonhos chegam na hora em que a gente quer. Talvez eles cheguem, mesmo, na hora em que a gente precisa deles como fatos concretos, e não apenas sonhos. E, entre o querer e o precisar há um mundo de água de diferença, fluindo sem parar.

A decepção da derrota encurvou os ombros do meu amigo. Mas isso não me preocupa muito. Marcelo tem amigos leais, uma mulher sensacional (não, ele não vai terminar seus dias sozinho, numa biblioteca. Se depender de Tatiana, vão terminar assistindo ao por do sol numa praia magnífica e tomando drinks de cores exóticas e nomes impronunciáveis), pais que o apóiam e, de um jeito ou de outro, sempre dá um jeito de sair do lamaçal. Naquela tarde, o jeito que arrumou foi visistar um sebo em Copacabana. Há coisa mais representativa para quem ama o passado do que um sebo? Pessoalmente, acredito que minha cabeça seja um sebo...!

E qual não foi a surpresa de Marcelo ao encontrar, meio escondido numa prateleira aos fundos, o livro de História Geral com o qual estudamos em nosso longínquo 2° grau (ainda se usa esse termo...?). Meu amigo tomou o livro nas mãos, acariciou a brochura, cheirou as páginas como se para absover o tempo, sempre o maldito tempo que passa e não volta mais. Lembrou-se da Professora Márcia, que tanto inspirava a gente a amar a História e debatê-la. Folheou-o, vendo os capítulos sobre Feudalismo, Revolução Industrial, outras grandes Revoluções mundiais, tudo aquilo que para ele, hoje, ainda é amado, só que mais simplório, quase banal. Visualizou bem a capa, o ano da edição, até as figuras que recheavam o livro. Aposto meu dedo médio, que é o que uso mais para digitar, que Marcelo até tentou responder mentalmente a uma ou duas perguntas dos questionários que fechavam cada unidade. Ele vai morrer dizendo que não, mas ambos sabemos que ele o fez. 

Comprou a "relíquia" por R$ 15,00. Andando de volta para casa, Marcelo olhou o livro mais uma vez e pensou que, em sua memória, ele era maior, mais pesado, mais robusto. Ele teve aquela sensação que temos ao visitar a casa onde passávamos férias, quando crianças: tudo parecia enorme aos nossos olhos infantis e, agora, é tudo insosso, do tamanho da gente. A mesma sensação que o Léo, da peça "Léo e Bia" tem, quando vê sua amada depois de muitos anos de ausência: "Você era mais loura no meu sonho, que em meu olho, eu sei...".  Por isso é tão bom ser criança: tudo é majestoso, e lindo, e heróico e gigantesco. Até crescermos e, tristemente, virarmos anões num mundo de gigantes.

E quando a tristeza e a derrota estavam quase congelando a alma de meu amigo, ele vê, nas letras míudas da contra-capa, os dados acadêmicos dos escritores daquele livro que já fora, um dia, o livro mais importante de Marcelo. E meu amigo sorri. Um sorriso meio de lado, como é o sorriso do soldado inglês ferido e moribundo, que sabe que o reforço Aliado já está a caminho, para a vitória final. Os autores daquele livro, que era o livro adotado por todas as escolas de maior prestígio na época, não têm mestrado, nem doutorado. São simples bacharéis. E escreveram e fizeram história, mesmo assim. 


Soldados Aliados aportando na Normandia. 6 de junho de 1944, o Dia D
Marcelo olhou para o céu azulado de Copacabana, para os seus prédios e moradores antigos, e, mesmo estando longe do mar, pôde sentir o cheiro de sal renovador e vital em suas narinas. Fechou o livro, colocou-o carinhosamente em baixo do braço e deu um sorriso mais aberto e otimista desta vez. Meu amigo perdera apenas uma batalha, mas sabia que ainda haveria muita luta pela frente até que pudesse ter seu estandarte em mãos. De repente, não se sentia mais tão pequeno, tão interiorano e aprendiz. A vez de Carreiro, Ph.D. vai chegar. E ele sabe disso, porque quer e precisa disso. O reforço Aliado acabara de  aportar na praia. E Marcelo teve seu próprio Dia D, com um sabor inesquecível de vitória e recomeço.

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