19 de outubro de 2010

Horário de Verão


"A Persistência da Memória", Salvador Dali
A casa inteira dormia, às quinze para uma da madrugada. Na verdade, ainda faltavam quinze minutos para as doze badaladas no hemisfério sul, mas, miseravelmente conformados, todos, adultos, adolescentes e bebês, entramos no esquema do horário de verão e fomo-nos deitar, insones e aborrecidos.

Meio perdidos no ritmo lento e displicente de nossas vidas e personalidades, estávamos assistindo a um filme de dragões na Rede Globo que, diga-se de passagem, desperdiça o talento ímpar do ator inglês Jeremy Irons, quando durante o "plim-plim" dos comerciais, fomos surpreendidos pelo aviso cretino do locutor: "atenção, à meia-noite de hoje, adiante seus relógios uma hora". Seria cômico se não fosse quase, veja bem, eu disse quase trágico. Em resposta imediata ao aviso, soltamos um "Ah..." infeliz coletivo, acompanhado de muxoxos infantis e alguns palavrões mais adultos. Por aqui, é unânime: ninguém gosta do esquema "adiante seu relógio". E, o que é bem pior, custamos todos um bocado para entrar nesse esquema.

É claro que há as particularidades práticas da coisa: no domingo, a casa acordou quase ao meio-dia, quando já tínhamos compromissos marcados para as onze. A sensação de tempo perdido é lamentável. Às doze a.m, as crianças não têm fome, mas têm que comer, porque é meio-dia, embora às reais onze horas, ninguém pensasse em encher suas respectivas panças de arroz, feijão e canjiquinha. Às 18:00h, com o sol rachando - O.K, não estava "rachando", mas ainda tinha sol para mais de metro - vem a lida para colocar a pirralhada de molho no banho. E o que se vê é uma fila de crianças sujas e tristes em direção aos banheiros, deixando o terreiro ensolarado para tomar o banho mais chato do domingo.

E, na segunda-feira, quem acordava às seis da manhã, acorda com o dia quase às escuras. Acordar com as galinhas já é um crime, imagine então acordar antes delas - porque, ao que me consta, galinhas não dão à mínima para o horário de verão e a economia de energia. Olhos inchados, caras emburradas, estômago vazio, segue a galera para a Topic, porque estudar é preciso e as férias abençoadas de dezembro ainda estão a anos-luz de distância, no ponto de vista adolescente.

Para nós, adultos, a coisa toda deveria, veja bem, deveria ser mais fácil. Porque uma das definições a priori de "adultescer" é entrar rapidamente na valsa dos esquemas sociais. Afinal, depois dos 30, encarnar o "rebelde sem causa", não adiantar os relógios uma hora e perder o horário do serviço na segunda-feira seria, no mínimo, descabido e patético. Embora, confesso, isso já tenha acontecido comigo uma, talvez três vezes, no máximo. Mas não porque eu, quixotesca, quisesse lutar contra moinhos de vento do horário de verão, mas porque, realmente, eu costumava passar o domingo inteiro lendo ou assistindo a DVD's, o que me deixava totalmente à margem do maior acontecimento brasileiro do circuito primavera-verão. Basicamente, eu só tomava conhecimento de que uma aula que eu daria às dez da manhã tinha "mudado de horário" quando minha coordenadora me ligava, às 10:30h, enfurecida, me perguntando porque diabos eu estava meia hora atrasada. Como assim? Ainda são 9:30h... Mas isso aconteceu bem antes dos meus 30 anos. Tenho certeza de que fui absolvida.

Para quem trabalha em comércio, o horário de verão é um aguilhão a mais. Se fechamos as portas às oito da noite, habitualmente, temos que estender a jornada para as nove, sem choro, nem vela e muito menos fita amarela. Porque, no verão, donas-de-casa e seus rebentos, adolescentes, casais de namorados e outros clientes em potencial deixam para sair mais tarde, já que o sol, ilusoriamente, se põe mais tarde. Às oito da noite do horário de verão, no carnaval, por exemplo, nenhum gato é pardo, pode acreditar, então o comércio tem que entrar no esquema e baixar as portas para lá das nove da noite. 

E as chuvas de verão, que prendem incautos "desasombrinhados" às sete da noite em escolas, padarias, farmácias, academias e shoppings? Mas a chuva não era para cair mais tarde, Virgem Santa? Acordem, cidadãos tupiniquins! É o horário de verão. Ou se dança conforme a música, ou se corre o risco de ficar de fora do baile.

Mas o que me enerva mesmo no horário de verão, é essa história de ouvir o locutor, educada e atenciosamente, mandar que a gente adiante os relógios uma hora. Primeiro, vêm a minha mente todos os relógios que eu vou ter que adiantar, principalmente os de parede, que exigem escadas para alcançá-los. Pior mesmo é a relíquia que tenho na sala, um Silko de cordas, que bate a cada quinze minutos. Para "acertar" um relógio desses, você deve mover o ponteiro dos minutos apenas um quarto do círculo por vez, esperar que ele bata e, só então, adiantar mais um quarto, até avançar uma hora cheia. Juro que, se o esquema fosse adiantar os relógios duas horas, meu Silko ficaria definitivamente parado no tempo. 

E aí vem a parte elucubrativa da coisa, para não dizer filosófica, que pode pegar mal. Adiantar uma hora da vida? Agitar ainda mais esse ritmo que não damos conta de acompanhar? Tirar uma hora do dia e fazer o sol se por ainda mais depressa? Derreter a memória da gente? Ataques de rebeldia à parte, essa ideia é assombrosa.

O que eu queria mesmo era atrasar meus relógios uma hora, para ter mais tempo de vida, para correr menos, para poder observar tudo com mais paciência e com uma hora de vantagem. Eu sou como o relojoeiro cego do Benjamin Button, que projetou o relógio da cidade de forma que ele andasse para trás, e não sentido-horário. O relojoeiro do filme era dono de uma alma saudosista, que perdeu o filho único para a guerra e, com seu relógio anti-horário, sonhava com um mundo que pudesse girar ao contrário, anti-guerra, anti-sistema, anti-mortes, anti-desilusões, anti-progresso. Ele queria mais tempo. Um tempo que não tinha, porque ele o perdeu, e que nunca mais voltaria.

É próprio da vida seguir em sentido-horário. A própria Teoria da Relatividade afirma que, se pudéssemos construir um mecanismo capaz de alcançar a velocidade da luz, seria teoricamente possível adiantar ao menos um átimo de segundo do tempo que fosse. Mas a Teoria é categórica: poderíamos apenas adiantar uma partícula ínfima no tempo, jamais fazê-la retroceder, jamais em sentido anti-horário.

O que me leva a pensar então que, com exceção de adolescentes que odeiam regras de qualquer natureza e adultos em crise de rebeldia tardia, apenas saudosistas e melancólicos de plantão, como os poetas fin de siécle, o relojeiro cego e blogueiros que, como eu, escrevem para lavar a alma, mais como uma forma de terapia do que como hobbie (e não ganham um centavo com isso), enfim, tirando essa galera que gosta de apontar os faróis para o passado, o resto dos mortais não se importa muito em seguir a vida no sentido-horário.

O quadro que ilustra esse texto anda de mãos dadas com a ideia de que o correr da vida e do tempo vai de contramão à memória, ao saudosismo, a essa loucura de querer fazer os minutos passarem mais lentos, até pararem por completo, para que nos seja possível congelar um momento, uma fase, um sentimento que seja. Na persistência de nossas memórias, o tempo derrete e os relógios escorrem porque não passam de meros marcadores de tempo material diante da grandeza que é a capacidade humana de absorver o imaterial, este, sim, eterno, atemporal.

Interpretações pseudo-artísticas à parte, se acaso eu encontrasse o doidão Doutor Emmett Brown, aquele que inventou uma máquina para viajar no tempo, e levou uma geração inteira à loucura com a trilogia "De Volta Para o Futuro", eu faria exatamente como o Marty McFly: voltava para o passado (desculpem-me, fãs ardorosos da Parte II. Eu sei que a viagem dele para 2015 é um barato, concordo!). Mas se eu pudesse voltar para o passado, não sei se efetivamente mudaria alguma coisa. Pensando bem, e para ser honesta, eu mudaria um bocado de coisas... Quem não o faria? Por isso os cientistas já cortam o nosso barato pela raiz: se, e somente se isso fosse possível, o máximo que conseguiríamos fazer seria avançar uma partícula pelo espaço-tempo para frente, sentido-horário. Pedala, McFly!

Mocidade Independente, 1992.
Vai que, numa tarde quente de verão, o pessoal dos X-Men resolve passar pela minha cidade. Com a ajuda do Professor Xavier, qualquer um de nós pode descobrir seu poder mutante. E se eu estiver no mesmo nível da Jean Grey, meu amigo, vou controlar o tempo, claro. Meus relógios vão andar para trás, eu vou conseguir congelar os minutos, aqueles melhores minutos da vida, por dias inteiros, vou fazer os segundos durarem horas quando a felicidade bater à minha porta ou, ao contrário, avançar o tempo para fazer uma hora passar em dez minutos, quando meu céu estiver carregado demais. Sonhar não custa nada, não é mesmo? E essa frase é um cliché tão bom, reconfortante e amado que até ganhou prêmio de melhor enredo de Escola de Samba, no longínquo ano de 1992. Ao leitor carnavalesco, que torce para a Mocidade Independente de Padre Miguel, vai minha empatia; eu também queria voltar no tempo, nem que fosse só para cantar bem alto que sonhar não custa nada, principalmente se o sonho da gente é tão real.

2 comentários:

  1. eu me acho cada vez mais abestalhada qdo leio seu blog, pq eu nunca pensei no poder de controlar o tempo dos X-Men, eu sempre quis ler mentes! ai, credo, sabe, nem sei escolher super poderes! =P

    ResponderExcluir
  2. Eu jamais leria mentes. Que medo! Já pensou, no meio de uma transa, sei lá, você ler a mente do cara? Creepy! Nossa, eu sei total escolher super poderes. Tenho que te ensinar!

    ResponderExcluir