24 de outubro de 2010

amor de tio

O tio que eu mais amo nessa vida, aquele que faz aniversário um dia depois de mim e que, desde sempre, foi meu companheiro oficial de viagens e aventuras, está apaixonado. De verdade. Talvez pela primeira vez em sua vida. Ele tem quase setenta anos, viveu um casamento infeliz pela maior parte de sua juventude, "aprontou" como aprontam a maioria dos homens de sua geração, tomou e deu lambadas e, há poucos anos, separou-se defintivamente. 

Claro que a separação deu uma confusão danada. Mas, pensando bem, que separação não gera confusões? Houve uma época em que meu tio quis até abandonar a vida, enclausurou-se dentro de si mesmo e dizia, como dizem todos os homens dessa família, que seus dias estavam acabando, e que ele iria se mudar para o alto de uma serra, para ficar sozinho de vez. Claro que, como a todos os irmãos desse tronco da família, ignoramos suas afirmações fatalistas. Apenas esperávamos que aquela fase passasse e que meu tio voltasse a ser ele mesmo. 

Depois de quinze anos, meu tio reencontrou a mulher que, naquela época, não poderia ser dele, porque ele já pertencia à outra e ela, a outro. Bom, se essa história o fizer se lembrar de "Amor nos Tempos de Cólera", é mera coincidência. Se bem que o foco é o mesmo: paixão e amor não têm idade. Quando vêm, rejuvenescem o indivíduo, fazem os ponteiros do relógio voltar para trás e sopram vida, vigor e alegria para dentro da alma dos enamorados.

Preconceito é algo terrível, a prova máxima da intolerância e burrice humanas. E o preconceito para com o "amor dos idosos", como se tal termo monstruoso fizesse sentido, é um dos que me talha mais violentamente o sangue. Porque não existe amor dos jovens, ou amor dos adultos, ou amor dos adolescentes, e muito menos amor dos velhos. Existe, simplesmente, amor. E ponto. O que muda é a forma de amar e se entregar em cada fase da vida. Quando o amor chega ao coração, ele tem a capacidade quase mística de nivelar a todos numa fase única, como se congelasse o tempo e a idade de todos os amantes. Hoje, olho para o meu tio e não vejo um senhor com um casal de filhos quarentões. Vejo um homem feliz, pleno, sereno, sorridente e apaixonado. E fico absurdamente feliz pelo casal, tão feliz que, quando os abraço, choro de emoção, choro porque a felicidade deles me completa e me faz feliz também. 

Dia desses alguém da família comentou: "Coisa mais doida. Depois de velho, apaixonado!". Suspirei, contei até mil quatrocentos e noventa e três, entrei em estado de nirvana e segurei minha língua assassina. Não dá para ficar voando no pescoço de cada um que achar a paixão do meu tio ridícula. Fui dar uma volta na estrada de chão para espairecer e pensei comigo: então existe uma norma, uma idade regulamentada para se apaixonar. Depois de tal idade, o coração morre, morrem os sentimentos, morre a possibilidade de duas pessoas darem-se as mãos, beijarem-se na boca e tomarem sorvete juntas na praça. É isso? Não, não é. A vida já é dura e amarga o bastante para nos tirar até isso: o encantamento pelo outro, a habilidade de se enamorar, não importa quando.

E esse é o ponto-chave de tudo: a habilidade de se enamorar. Porque apaixonar-se e se entregar ao outro são uma habilidade, quase um dom. Muita gente jovem não tem essa capacidade, e muitos são os que vivem uma vida inteira sem se apaixonar de verdade ao menos uma única vez. Para que alguém se apaixone e se entregue, é preciso um sentimento de altruísmo imenso, um despreendimento de si mesmo e muita coragem. Coragem para se expor e, talvez, viver uma decepção. Ou não. No lugar da decepção, pode vir a paixão e, dela, um companheirismo e uma sincronia que fazem a alma florescer, não importa a idade dos amantes. Na floragem, somos todos iguais, primaveris, repletos de vitalidade e prontos para dar frutos.

Meu tio já apresentou a namorada à parte da família. Ela é quase vinte anos mais jovem que ele, carinhosa, cuidadosa, sorridente e bela. Os dois conversam e andam de mãos dadas o tempo todo. Para mim é comovente ver meu tio dar sorrisos largos, arrumar-se para encontrar a namorada, regular a dieta e usar o perfume que dei a ele para "apimentar" o romance dos dois. O comentário mais apropriado e, ao mesmo tempo, sentimental sobre o romance veio de meu pai, irmão mais velho do meu tio apaixonado: "Essa paixão vai dar anos de vida ao Dudu". Não tenho dúvidas a respeito disso. 

Antes de se entregar a esse novo, antigo amor, meu tio morava sozinho num cantinho desorganizado e sempre de janelas fechadas. Agora que ele ensinou o caminho da roça à namorada, me contou que vai arrumar seu "cafofo", colocar uma cama de casal, pintar as paredes e comprar um fogão para ela, quando vier lhe visitar, fazer alguma comidinha gostosa para os dois. É lógico que, para essa primeira refeição, eu já estou oficialmente convidada. Prometi levar velas, dessas aromáticas, coloridas e exóticas e que, só de olhar para elas, já dá vontade de beijar na boca e cair numa cama de casal. É incrível o que o amor faz com alguém. Você quer ser um indivíduo melhor, passa a se cuidar mais, quer arrumar a casa, as gavetas e o armário, quer arrumar a vida, para si mesmo e para o outro.

Meu tio é cabreiro, um bicho-do-mato arisco, morrendo de medo de tomar um pé na bunda. É compreensível. Por isso ele não admite, nem sob tortura chinesa, que está apaixonado. Mas isso é totalmente desnecessário: está na cara dele, nas gargalhadas que dá e no brilho nos olhos, lindo. Eles formam um casal harmonioso: ele, moreno de cabelos pretos, com poucos fios grisalhos. Ela, um pouco mais baixinha, de uma pele leitosa e cabelos tingidos de louro-mel. Uma vez perguntei ao meu tio se ela diz que o ama. Ele riu, ficou meio vermelho por causa do embaraço que lhe causei e disse que sim, mas que não acredita nessas coisas, não. Passei-lhe um sermão homérico, dizendo que ela esperou por ele quinze anos, tem uma vida própria, não precisa dele para se sustentar, é vinte anos mais jovem, é bonita e atraente, e liga para ele todos os dias, às vezes mais de duas vezes por dia. "De que provas mais você precisa, tio?". Aí, então, ele dá uma gargalhada alta, indefectível e contagiante, e rimos os dois, contentes pela vida, pelo amor, pelo renascer. Para ralhar com ele, eu falo, em tom de censura: "Cuidado, meu tio, não fica fazendo doce, que a fila anda, viu?". Damo-nos muito bem, meu tio e eu. Ele é um segundo pai para mim. Vê-lo apaixonado, e ser correspondido, é um presente para mim.

Ele jura que não vão morar juntos. "No máximo passar a noite, de um dia para o outro". Para amansar a fera, eu digo: "Claro, tio. E não deixe escova de dente, chinelos, nada na casa dela. Assim você garante sua individualidade". Ele olha para mim, sério, e responde. "Isso mesmo. Não pode sair deixando as coisas lá, né?". Mas, antes de sobrinha, eu sou mulher. Concordo com ele, mas me coloco no lugar da namorada, que já separou um cantinho especial para algumas peças de roupa dele, além de querer derrubar uma parede na entrada da casa para que ele possa guardar o carro, ao invés de deixá-lo na rua. Meu tio se arrepia dos pés à cabeça só de ouvi-la falar nessa tal "garagem improvisada". Antes de mulher, sou sua sobrinha favorita, tenho que jogar no time dele, claro. "Isso mesmo, tio. Nada de garagem!". Mas, sobrinha, filha, mãe, eu sou uma mulher em qualquer situação. E, lá no fundo, torço para uma cerimônia de união daqueles dois, meu tio todo bonitão, de terno, gravata e bastante perfume, ela, leve e linda, de vestido bege e batom cor de rosa claro, com um entardecer majestoso a lhes servir de anfitrião. Pode não acontecer, mas seria uma outra bela história para contar.               

2 comentários:

  1. imagens perfeitas e história mais ainda.
    ah, o amor. (suspiros ad eternum...) =]

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  2. E esse é real. Suspirus ad infinitum...

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