5 de outubro de 2010

Vandinha X Pollyanna


Hoje o baixo-astral, um antigo companheiro meu, resolveu me acordar cedo, antes de o galo mais madrugador cantar. Não é sempre que ele me visita, não é sempre que me aprisiona, mas ainda acontece.

Em dias como esses, tenho vontade de cobrir os espelhos da casa com velhos lençóis empoeirados, despentear ainda mais os cabelos e prendê-los num coque ainda mais austero. E, acima de tudo, tenho vontade de escrever, correr, evanescer.

Para longe daqui, para longe das memórias, para longe de mim. E com música. Mahler, se for possível. Na falta do erudito, vai Herivelto Martins. E, hoje, respeite ao menos meus cabelos brancos. Mesmo que eles ainda não tenham chegado.

O céu está azul, arrebentando em reflexos solares, mas minhas lentes cinza não me deixam vê-lo. O mundo é isso. Um reflexo do que as lentes da gente vêem. A gente é isso: o reflexo que vê de si mesmo. Pode-se ser uma sombra comprida, uma poça transparente, um nevoeiro.

Mas, hoje, meu espelho é como aqueles das "Casas dos Espelhos", de antigos parques de diversão. E vejo-me com a cabeça grande e pesada para um corpo comprido, braços que vão até o chão, pernas tortas, os outros rindo de si mesmos e, eu, procurando a graça que escapou pelos meu dedos.

E, quanto mais colorido o mundo, mais preto-e-branco se fica num dia de bruxa, de avestruz, de anum. Aparentemente, não dá para se ser corrupião todo dia. You win some, you lose some.

Talvez o baixo-astral tenha ido embora lá pelas cinco da tarde, deixando apenas aquele gosto de cabo de guarda-chuva na alma. Talvez esse convidado, ou melhor, "penetra", resolva ficar mais um dia ou dois. Ou, talvez, eu devesse ser menos Vandinha Addams e mais Pollyanna, a garota do "jogo do contente". Ser mais prática e objetiva, parar de olhar para trás e alinhar os pés à frente.

Mas bem lá no fundo eu acredito que esse tal baixo-astral embarcou, sorrateiro, em meu carro, na viagem de volta da roça. Lá, com os pés fincados na terra, eu sou sempre corrupião, nunca cubro espelhos e penteio meus cabelos. Lá, sou Pollyanna. Daí, volto e, até passar por uma equalização completa, encarno a Vandinha por um tempo. 

Porque eu gostaria de poder ficar lá. Mais que isso, gostaria de poder voltar o tempo, quando eu não tinha responsabilidades e podia passar meses inteiros lá, quando, em criança, eu não imaginava que as lentes em meus olhos poderiam, um dia, se tornar cinza.

Mas, como já dizia Frederico Mercúrio, o bendito show deve continuar. Em protesto, porque eu ainda sou muito daquela mocinha que passava férias com minha tia e meus primos no lugar que eu mais amo no mundo, toco a tal música em mil decibéis, incomodo vizinhos e vou à luta. 

Com passos arrastados, pesados e trôpegos. Mas vou. Se parar, minha Vandinha há de se cobrir de limo e lodo, então acho melhor seguir em frente, mesmo que o sol me machuque os olhos, os espelhos me enfureçam e o grito do Freddie: "the show must go on", no final da canção, faça com que eu me pergunte: Por que? Por que o show tem que continuar? Para que? Para quem?

Dizem que quem pergunta e pensa demais vive de menos. Não concordo com isso. Pelo menos, não inteiramente. Quem pergunta e pensa demais vive o mesmo "tanto" que vivem os que não questionam e não queimam mufa a maior parte do tempo. A diferença é que, quanto mais questionamentos e filosofia, menos reta vai ficando a linha que se deve seguir para viver. E corre-se o risco de perder o prumo, embaçar a visão, virar balão e aí... Pluft! Voa-se ao céu, quando o socialmente aceitável é caminhar, pé ante pé, na linha do trem. 

Vandinha ou Pollyanna, cabelos em coque ou soltos, não dá para ser avestruz e enfiar a cabeça no escuro confortável de uma fenda na terra. E, pensando bem, quem teria um anum solto, numa árvore do quintal?

Melhor então que eu pratique mais, e melhor, o "jogo do contente". Alguém aí tem uma sugestão de como começar...?

2 comentários:

  1. eu tenho:
    (não para jogo do contente, mas it helps, anyway):
    nessas fases negras, eu acho que há que se viver a fase, MESMO; tem que colocar aquela música melancólica bem alto, algo como Norah Jones ou Nina Simone, se encher de chocolate ou daquilo que a gente gosta, abraçar o travesseiro, ver dramas, escurecer o quarto... mas claro, don't go on like that forever.
    nosso corpo acaba pedindo janelas abertas e música pra dançar, é autoproteção. então, tenhamos limites: um dia negro, talvez dois, mas nada mais que isso pra não desesperar amigos, família e o seu lado resistente. =)

    todo mundo tem seus dias de Wednesday, e são eles que fazem os dias coloridos ainda mais coloridos, não é mesmo?

    you still have beautiful surroundings, look around you. =]

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  2. Valeu, linda. Nora, Nina e Montenegrume já!

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