24 de outubro de 2010

Baiano

Dia desses, à tardinha, me sentei num banquinho de padaria e pedi um misto-quente, sem manteiga. E uma latinha de Coca Zero, para ajudar a vida a descer, já que, a seco, não vai de jeito nenhum. E cerveja, vinho, pinga e afins não me apetecem.
Ao meu lado, lanchava o Baiano, um maluco-beleza famoso e manjado da cidade, meio mendigo, meio autônomo, meio doido, meio lúcido, totalmente liberto.
Ele olha para mim, franze o cenho, e engole o último pedaço da coxinha que alguém comprara para ele.
Baiano deve ter quase seus setenta anos.
O que quer dizer que me conhece desde bebezinha melequenta, chorona e frágil.
Eu olho para o Baiano e suspiro.
Estou sentada num banco de padaria, meio encurvada e encolhida
porque cai na rua uma chuvinha fina e fria
e porque eu não queria estar ali, com frio e tão longe
de mim mesma.
Mas preciso de um misto-quente com Coca-Cola.
Não comi nada até agora, então um misto é essencial.
Digo, meio desanimada:
"E aí, Baiano, o que 'cê conta de novo?".
Afinal, eu tenho um respeito medieval pelos malucos-beleza da cidade.
Baiano não me responde de prima.
Fica olhando para a minha cara, fixamente.
E comenta:
"Mas que cara mais triste é essa, Dona Roberta...?"
"Dona Roberta". Meu coração falha três batidas. E aquele
"dona" fica ecoando em meus ouvidos, me fazendo sentir
vontade de sumir dali, sumir de mim... "Dona"?
Mas eu respeito medievalmente o Baiano. Respondo:
"Ah, Baiano, são problemas da vida, do coração, sabe cumé...".
Baiano dá uma risada de poucos e escuros dentes.
E franze ainda mais o cenho.
Pega seu copo de café com leite e toma o último gole.
Juro que ele tomou aquela golada como se fosse um shot de tequila.
Bom, a atitude dele, tão dono de si,
tão liberto de tudo e de si mesmo, foi o que me fez imaginar
que o Baiano estaria muito mais digno e bem alocado, tomando tequila shots
num restaurante mexicano, cercado de chicas voláteis e sensuais.
Ou talvez eu estivesse mesmo num episódio
do "Além da Imaginação", que minha alma
projetava no ambiente, à revelia de mim mesma.
Mas o Baiano não tinha parado por ali. Ah, não...
Ele estava apenas começando
sua doce tortura psicológica.
Ele me encara, olha no fundo dos meus olhos.
Os dele, negros, indecifráveis; os meus,
da cor do mel, translúcidos e incautos.
E Baiano, sem perceber, me dá uma facada no peito,
um tiro à queima roupa,
um tapa de luva de pelica,
quando diz assim, num tom de plena superioridade:
"Você, com problemas?
Mas herdeira não tem problema nenhum!"
Morri por alguns segundos.
Dei um sorriso amarelo e torto, de muitos e brancos dentes.
Peguei meu misto, embrulhado em papel de pão, e a Coca, sem açúcar mas com o mesmíssimo sabor da original.
Dei um "tchau" tímido para o Baiano e para as meninas da padaria
e fui comer na pracinha, mesmo com a garoa
a me molhar os cabelos, o casaco e os olhos,
já úmidos...
O misto tinha gosto de borracha.
E a Coca,
pareceu-me pinga da pior qualidade.

2 comentários:

  1. choque de realidade dada por maluco-beleza é punk!! =P

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  2. Punk no último nível. Só vivenciando pra se ter uma vaga, muito vaga noção!

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