27 de outubro de 2010

um dia desses

"O Grito", Edvard Munch
Suzana estava cansada, absolutamente farta do seu trabalho como secretária do dentista mais avarento da cidade, farta da gordura localizada que teimava em se alojar em sua cintura; do marido que, quando parava em casa, passava o dia deitado no sofá, sem lhe dizer ao menos "Oi, Suzana"; do filho adolescente que aderira a uma tribo emo e vivia pegando a pouca maquiagem que ela tinha, além de passar as tardes ouvindo músicas esquisitíssimas pela casa; do casal de vizinhos que transavam a noite inteira e faziam um barulho mais infernal do que o da cruza de gatos; do casal de "amigos", Lúcia e Borges, que a convidavam para os programas mais tediosos da cidade, aos quais ela era obrigada a comparecer, já que Lúcia era amante do dentista, seu patrão; cansada dos forrós que rolavam alto o domingo inteiro em sua rua; da faxineira que não limpava os cantos nem tirava as teias de aranha das cortinas; do dono do horti-fruti, que ainda tinha esperanças de levá-la para cama e insistia em vender um cacho de bananas pela metade do preço, só para Suzana; dos mil recados que a Dona Inês, esposa do seu patrão, fazia-lhe anotar (se ao menos Dona Inês descobrisse a putaria do doutor Carlos com Lúcia...); cansada de chegar em casa e ver o pobre, feio e cornudo Borges, sentado na poltrona ao lado de Cláudio, seu marido, os dois bebendo cerveja, cultivando suas panças flácidas e assistindo a uma partida de futebol sem importância. Suzana estava temerosa, completa e irrecuperavelmente farta de sua própria vida.

Ela olhava para o espaço ao seu redor e tudo o que conseguia experimentar era aquela sensação horripilante do homenzinho careca de um quadro que o doutor Carlos tinha no consultório, um tal de "O Grito". Aliás, Suzana nunca chegara de fato a entender porque um dentista - o profissional mais odiado do mundo, depois dos políticos - colocaria um quadro tão assustador como aquele justamente no local onde arrancava dentes podres, fazia obturações e cortava as gengivas dos pacientes. Por que ele não pendurava uma paisagem bonita da Europa, uns cavalos correndo numa pradaria, qualquer coisa, menos aquele sujeito sem olhos, gritando, com tudo parecendo derreter atrás dele. Há muitos anos, quando Suzana tinha acabado de ser contratada como secretária, comentou com Lúcia sobre o tal quadro. A morena alta e peituda, com quadris que eram o dobro dos de Suzana, olhou-a com desdém e disse que aquilo era "arte", era um clássico expressionista, e que alguém como Suzana jamais entenderia de arte. Arte. Então tá. Suzana deveria desconfiar que, já naquele tempo, a Lúcia e o doutor Carlos deviam fazer muita arte expressionista no motel da saída da cidade.

Podiam falar qualquer coisa de Suzana. Que ela era anti-social, fechada, desleixada com a própria aparência, enfim, que falassem dela à vontade, ela não dava à mínima. Mas se alguém abrisse a boca para falar que ela era caloteira ou que punha chifres no Cláudio, aí Suzana virava um saci e só não saía cortando cabeças porque era baixinha e sabia que iria presa se fizesse algo desse tipo. Ela podia ser tudo, menos caloteira e puta. Sua mãe tinha lhe dado muita varada quando criança para enfiar isso na cabeça de Suzana: "conta, a gente paga é no dia que chega; marido, a gente agüenta calada, sem pular a cerca, mesmo se ele for mais seco e espinhoso que um cacto". Lembrando-se das palavras da mãe, Suzana tinha até vontade de rir. Porque Cláudio, antes do casamento, um homem até suportável, agora era muito, mas muito mais seco e inútil do que um cacto.

Suzana tinha apenas 35 anos, mas se sentia como Dona Luíza, sua madrinha, uma senhora de quase 70. Ela arrastava os passos aonde quer que fosse, andava encurvada, não pintava as raízes brancas que começavam a apontar nos cabelos, ou demorava meses para retocá-las, não tinha ânimo para fazer academia como as outras mulheres da cidade, não conseguia dialogar com o filho de apenas 15 anos, não cedia às investidas de Cláudio, que só a procurava depois de beber, no mínimo, duas latas de cerveja e, para ser sincera, ela nem queria muito mais saber daquele esfrega-esfrega sem graça do marido. Quando abria os olhos pela manhã, antes de deixar o almoço pronto para Felipe e Cláudio e ir para o serviço, tudo o que Suzana mais desejava era que o dia passasse na velocidade da luz, para chegar logo a hora de dormir novamente. Suzana tinha mesmo, às vezes, era vontade de sumir. Tinha ganas de entrar dentro daquele quadro feio do doutor Carlos e fazer morada por lá.

Ela não morara a vida inteira em Uberlândia. Suzana havia nascido numa cidade do tamanho de um ovo, chamada Laranjal, na Zona da Mata. Aos 12 anos, já trabalhava, vendendo os doces em compota que sua mãe fazia. Ela descascava as frutas, tirava os caroços, amassava a polpa e a mãe cozinhava tudo com água e açúcar numa panela de cobre enorme, no fogão-a-lenha que tinham nos fundos do quintal. Depois, junto com a mãe, a menina enchia os vidros, colocava-os numa caixa grande e saía com aquilo pela cidade. Para cada pote que conseguisse vender, Suzana ganhava cinqüenta centavos. Ela tinha que vender muito doce em compota para poder comprar um vestido novo, se quisesse. 

Seu pai, um sujeito forte e de bom coração, que Suzana amava, tinha morrido atropelado pelo trem que passava por dentro da cidade naquele tempo. A menina contava, então, dez anos. O povo todo de Laranjal falava, pelas costas da viúva e da filha, que o homem tinha mesmo é se jogado na frente do trem. As duas fingiam que não ouviam, nem sabiam dos comentários mas, lá no fundo, elas também se faziam a mesma pergunta. O choque da morte do pai foi tão grande para a menina, que Suzana ficou uma semana inteira sem comer absolutamente nada. De hora em hora, a mãe entrava em seu quarto, levantava a menina à força da cama e a fazia beber um pouco de caldo de cana. Dona Rita chorava de tristeza pela perda do marido e de medo de que Suzana morresse também. Pois nem a garapa ela tomava. Tudo o que a menina fazia era olhar para o teto, com os olhos vidrados. Dona Rita sabia que Suzana não havia derramado uma lágrima pelo pai. Se ao menos a menina chorasse, quem sabe não melhoraria? A mãe pensava, lá com seus botões, que a filha sentia raiva do pai agora. Raiva porque ela seria a chacota do colégio municipal, porque agora a vida ficaria ainda mais apertada, porque o pai simplesmente decidiu tirar a própria vida e nem se lembrou da filha e da esposa. 

Uns quinze dias depois, a menina tinha voltado a se alimentar direito. Mas os olhos continuavam vidrados e ela pouco falava. Chegou a ir à escola umas três, no máximo cinco vezes, mas não conseguia ler direito mais, nem somar e subtrair como as outras crianças de sua classe. A professora chamou Dona Rita para conversar sobre Suzana. Disse que, talvez, o melhor a fazer seria deixar que ela perdesse um ano no colégio, ficasse em casa e se recuperasse completamente do "acidente" com o pai. Disse isso e pigarreou, altiva. E Dona Rita fez o que a professora lhe aconselhara. Só que, passado um ano, Suzana não quis ir à escola. A mãe sapecou-lhe o traseiro com uma vara de marmelo até deixar linhas profundas e avermelhadas na carne da menina, mas não adiantou. Depois, Dona Rita aplicou um castigo cruel em Suzana, que consistia em comer apenas pão puro e beber água. Pois nem a pão e água Suzana aceitou voltar a estudar. Quando a mãe pegou a velha cinta do falecido e ameaçou chicotear as pernas da menina com aquilo, Suzana fugiu de casa. Ficou sumida por três dias e voltou feito um bicho, coberta de piolhos, com os olhos remelentos e escaras pelo corpo inteiro. Dona Rita não insistiu mais com a menina, com medo de perder a filha de vez. E Suzana nunca mais voltou para estudar.


Foi quando contava 19 anos que Suzana conheceu Cláudio. O rapaz, com 23 anos na época, era caminhoneiro e passara por Laranjal para fazer um trabalho em Leopoldina. Viu a moça na feirinha da cidade e sentiu o sangue ferver em suas veias. Suzana era baixinha, do jeito que ele gostava, tinha cabelos escuros compridos e ondulados, peitinhos pequenos e empinados, e um traseiro firme que fez Cláudio querer uivar, com ou se lua. Ele chamou a moça para dar um passeio de caminhão. Suzana ficou encantada com as histórias que o moço contava de Uberlândia, lá no Triângulo Mineiro, que era de onde ele vinha. Até Belo Horizonte ele conhecia. Encantou-se também com o rosto redondo e bonito do moço, com seus cabelos da cor do milho maduro, e olhos esverdeados. Com tanto palavrório interessante, não demorou para que Cláudio beijasse a moça e a levasse para o fundo da boléia. De roupa ela era um filé, despida, então... Mas nem Cláudio, e muito menos Suzana, contavam com os olhos aguçados e a língua rápida e ferina do "seu" Agenor, dono do mercadinho da rua onde moravam Dona Rita e a filha. Quando Suzana chegou em casa, de mãos dadas com Cláudio, a mãe já a esperava na porta, com as malas da moça feitas. "É com esse aí que ocê fica agora, Suzana. Não te quero, desonrada, aqui em casa". E fulminou Cláudio com os olhos: "Agora leva com'cê, rapaz. E se já tiver mulher te esperando lá de onde vem, Deus ajuda que ela não te mete um pé nesse traseiro sem-vergonha". Olhou uma última vez para Suzana, com seu vestido todo amarrotado e os cabelos despenteados, fez um muxoxo de desgosto e fechou a porta. A moça olhou para Cláudio, desolada, seus olhos escuros fitando aquele verde-mar dos dele, implorando sem dizer uma palavra. Não, ele não tinha mulher esperando em casa. E Suzana era novinha, bonita, doce feito um caramelo, e ainda sabia cozinhar, lavar e passar. Cláudio nem precisou ponderar muito. Para um caminhoneiro, uma esposa até que viria a calhar. E foi assim, por descuido ou displicência, sem graça nem poesia, que Suzana, aos 19 anos, mudou-se para Uberlândia. Um ano depois nascia Felipe e, desde então, ela nunca mais pusera os pés em Laranjal, nem quando a mãe morrera, há três anos. Quem cuidou do enterro foi a madrinha, Dona Luíza, uma alma caridosa e ciente das coisas da vida. 

*****

Ela conheceu Lúcia porque Borges também era caminhoneiro, o melhor, talvez único amigo de Cláudio. E foi Lúcia quem arrumou o serviço de secretária para ela no consultório do doutor Carlos. Mas, antes disso, Suzana lavou muita roupa suja do marido, muita fralda de pano borrada do filho, limpou muito a casa pequena onde moravam. E o salário de Cláudio era sempre muito curto para todas as despesas da família. Pensando melhor, Suzana nem deveria julgar a put..., ou melhor, o caso de Lúcia com o dentista. Se não fosse por isso, ela e o filho estariam à míngua nas ruas de Uberlândia, se fossem depender exclusivamente de Cláudio, que quase nunca parava em casa. Suzana dava um suspiro triste e comprido quando pensava no marido, um homem atraente até hoje. Quantas moças ele ainda não deveria colocar naquela boléia, para passar o tempo nas estradas desse mundo que é Minas Gerais...? Mas ela não tinha tempo para pensar nessas bestagens. Tinha, sim, é que trabalhar e dar um jeito de engolir a seco aquela tristeza que, hoje, parecia matar o pouco que ainda havia de vivo dentro dela.

Suzana tinha a alma povoada de sonhos. Mas nenhum deles, nem o mais simples, ela pôde realizar. Quando ainda era jovem, antes de Felipe nascer, ela era louca para acompanhar o marido em uma de suas viagens pelo Estado. Mas Cláudio nunca lhe concedeu esse agrado. Dizia que, enquanto ele "rodava", ela precisava ficar em casa, tomando conta de tudo por ele. Depois que o menino nasceu, ela sepultou esse sonho banal e comum à toda esposa de caminhoneiro, além de muitos outros desejos que um dia sentira e que, agora, haviam-na abandonado.  

Aliás, banais eram todos os sonhos de Suzana. Ela queria ver o mar do Rio de Janeiro, gostaria de um dia voar de avião, sonhava em ter uma casa maior, para que pudesse decorar como bem lhe conviesse, queria uma televisão grande, para poder assistir às novelas de que ela gostava tanto... E, o que mais? Esse era o maior problema de Suzana. Ela deixara de sonhar há muito tempo, nem sabia mais o que desejar ou a que almejar. Ela sentia apenas um vazio enorme dentro do peito, que crescia a cada manhã, e temia desesperadamente que, um dia, não houvesse mais ela, a Suzana, mas só aquele vazio branco e gelado que a consumia muito mais rapidamente do que ela podia perceber.

Naquela sexta-feira, no final do expediente, Lúcia passou pelo escritório e ficou esperando por Suzana, no banco da pracinha em frente. Ao ver a morena, Suzana não conseguiu reprimir um sentimento de desagrado e repulsa. Lúcia era sua amiga, sim, talvez a única, e sempre a procurava e telefonava. Mas aquele caso dela com o dentista, e o Borges tomando cerveja em sua casa, sem saber de nada, e a Dona Inês, coitada, só cuidando dos cabelos no salão, aquilo não combinava com Suzana. Não estava certo. Mas ela jamais dera pitaco na situação da amiga porque, na verdade, Lúcia não abria espaço para aquele tipo de conversa. Suzana nunca entenderia como as pessoas eram capazes de viver no fio da navalha e se comportarem como se levassem a mais normal das vidas. Ela ajeitou os papéis, agendas e canetas na mesa em que trabalhava, pegou sua bolsa e foi em direção à Lúcia, arrastando os passos como se pesasse cem quilos.

"Oi, Lúcia. Não esperava te ver hoje por aqui, menina". Ela morava em Uberlândia há anos, mas não tinha adquirido o sotaque típico, aquele "r" puxado e enrolado.
"Pois é, Su. Adiantei todo o serviço na padaria e deu pra sair mais cedo. Vim aqui te chamar pra gente fazer alguma coisa."
"Vixe, Lúcia, tô num desânimo, doida pra chegar em casa, 'cê me desculpa, mas...". Lúcia interrompeu a amiga antes que ela pudesse completar a frase: "Só nós duas, Suzana. O Borges saiu hoje de manhã, foi pro Maranhão". Suzana olhou bem dentro dos olhos da amiga. Ela sabia que Suzana reprovava seu caso com o doutor Carlos. Sabia que era um suplício para ela sair com o casal, tendo consciência de que Borges era um dos maiores cornos do bairro. Ela suspirou e sentou-se ao lado da amiga. "Bom, nesse caso, a gente pode fazer qualquer coisa, né?". Além do mais, se voltasse para casa agora, encontraria Cláudio esparramado no colchão, já meio tonto por causa da cerveja, uma bagunça danada na cozinha para ela arrumar e Felipe, um menino que era a sua cara, mas que não tinha nada para compartilhar com ela. Agora, Felipe pertencia aos amigos dele e a mais nada. Talvez fosse mesmo melhor sair e espairecer um pouco com Lúcia.

"Escuta, Suzana, tava pensando de a gente ir naquele Café novo que abriu na Rondon Pacheco. 'Cê vai gostar, só tem gente fina, ninguém bêbado pra encher o saco da gente".
"É, eu tinha ouvido falar desse Café. Um monte de paciente que vem aqui fala dele. Mas, será que é bom mesmo, Lúcia?"
"Uai, Suzana, como é que 'cê vai saber se é bom ou ruim se não for, criatura?", e riu alto. Lúcia tinha uma risada cristalina, contagiante. Suzana riu também. "É verdade. Tem que experimentar, né?".

E pegaram um ônibus para o centro. O Café era simples, sem luxo nem nada requintado. Servia docinhos, uns salgados folhados, sucos de vários sabores, sorvete e, claro, café. Café de todo tipo, misturado com um monte de outras coisas, até café gelado tinha lá. Lúcia escolheu uma bebida com mate, açaí e leite que nem tinha ideia do que fosse. Ela era o tipo de gente que gostava de experimentar. Suzana pediu um café com chocolate, de que gostava, e assim tinha certeza de que não erraria. Ela era diferente de Lúcia. Não gostava do novo, talvez até tivesse gostado e desejado o novo um dia, mas agora perdera toda e qualquer vontade de experimentar o mundo.


"Credo, Suzana, 'cê vem num Café cheio de trem diferente para beber e pede leite com Nescau?"´. Lúcia gostava de fazer farra com a amiga, com aquele jeitão de bicho-do-mato que ela nunca perdera. "Se fosse procê beber leite com Nescau, a gente ia pra sua casa ou pra minha, uai!".
"Desencarna, Lúcia, deixa eu quieta. É capaz docê se arrepender de ter pedido essa coisa esquisita aí, que 'cê nem sabe o nome".
"Que arrepender, que nada, criatura! O que não mata, engorda!". E riu com gosto.

Suzana ficou tomando pequenos goles do seu leite com chocolate e observando a amiga, despachada e extrovertida, contando milhões de histórias, gesticulando amplamente e bebendo aquele líquido roxo escuro. Até que a bebida fazia vista. "Tá gostoso isso, Lúcia?", perguntou, meio sem jeito. "Menina, é bom demais da conta. Pena que 'cê não pediu um também".

Ficaram quietas por um longo tempo, olhando os carros passando pela avenida e o movimento de gente, para lá e para cá, sem parar. Lúcia pediu uma torta folhada de frango com espinafre, Suzana ficou com um pão de queijo mesmo. O silêncio entre as duas estava começando a incomodar Suzana, que não estava acostumada a ver a amiga tão quieta. Depois de mais alguns minutos daquele silêncio sufocante, Suzana quase caiu da cadeira de susto, quando a amiga lhe perguntou: "Esse meu caso com o Carlos. 'Cê não aprova, né , Suzana?"

Ela ficou boquiaberta, ridícula com o pão de queijo na mão, encarando a amiga sem saber o que dizer. "Lúcia, isso é coisa sua, de anos, eu não quero me meter, é sua vida...".
"Não embroma, Suzana. Eu sei que te incomoda. Por isso 'cê não aceita minha amizade".
"Besteira, Lúcia. 'Cê é a única amiga que eu tenho, né não?"
Lúcia largou os talheres no prato e virou-se de frente para Suzana. Ela tinha 45 anos, dez anos mais velha que Suzana, mas sua pele era uma seda, sem rugas nem espinha, e seus olhos brilhavam como os de uma moça.

"Sabe, Suzana, eu não gosto de ser a amante do Carlos. Eu amo muito o Carlos. Ele sempre me disse que ia largar a Inês pra ficar comigo. E isso já tem quase quinze anos. 'Cê acha que é confortável pra mim?"
A porteira tinha sido aberta. Agora Suzana podia, se quisesse, falar o que pensava sobre Lúcia e o doutor Carlos.

"Deixa de ser boba, Lúcia. O Carlos tá te enrolando, 'cê sabe disso, e fica nessa lengalenga, ainda enganando o Borges e a coitada da Inês, caramba".
"A Inês não tem nada de coitada, Suzana. Ela gosta dos cartões de crédito que o Carlos paga pra ela todo mês. 'Cê já reparou na quantidade de jóias que ela usa? Já viu que ela não repete uma roupa sequer? Sabia que ela tem mais de 50 pares de sapato e um monte de perfume francês? A gente passa férias em Caxambu, menina, ela vai pro exterior, 'cê não sabia, não?"
"Mas mesmo assim, Lúcia...".
"Não tem 'mas mesmo assim', Suzana. Ela trocou a fidelidade do Carlos pelo dinheiro e pelo conforto que ele dá pra ela".
"Tá bom, mas e o Borges?"
"Por que, 'mas e o Borges'? 'Cê quer ele procê? Te garanto que não é muito diferente do Cláudio, não. Só tá bem mais careca".
"Desconjuro, Lúcia, essas brincadeiras suas às vezes não convém, sabia? E eu lá quero saber do Borges, coitado... É que ele também fica saindo de corno enganado nessa história..."
"O Borges sabe de tudo, Suzana. 'Cê fica aí, ó, tomando as dores dos outros. E quem é que toma as suas? Pergunta pro Borges se ele quer sair de casa porque a mulher dele tem outro? Pergunta se ele quer perder os privilégios que Carlos me dá e que ele acaba aproveitando, também? Nessa história toda, danada mesmo tô eu, que fico esperando a hora do Carlos ficar só comigo...".

Suzana baixou os olhos. Estava terrivelmente envergonhada por saber os detalhes daquela história. Jamais poderia imaginar que a coisa fosse tão feia e tão enrolada. De repente, teve a sensação de que todos, ela, Lúcia, o Borges, Cláudio, Felipe, o doutor Carlos e Uberlândia inteira estavam dentro daquele quadro que ela odiava. Olhou para Lúcia. Ela estava séria, sobrancelhas franzidas, os lábios tremendo para segurar o choro. Suzana esticou o braço e pegou a mão da amiga. Estava fria e úmida. Contar aquilo tudo não deve ter sido fácil para ela.

"Sabe, Suzana, eu tô ficando velha. Passei os melhores anos da minha vida esperando pelo Carlos. E ainda tem tanta coisa que eu queria fazer...". Suzana pensou em si mesma, no quanto havia ficado amarga, desde que o pai morrera, desde que Cláudio passou a chegar em casa, de folga, e nem olhar mais para ela, passando o dia inteiro no sofá ou no colchão, porque aquilo era simplesmente confortável para ele. Porque, para Cláudio, ter uma casa, uma esposa, um filho e o trabalho que ele fazia desde os vinte anos, aquela vidinha de caracol lhe bastava. E ele não fazia o menor esforço para mudá-la porque, no fundo, estava satisfeito com tudo. Era ela, Suzana, quem queria um pouco mais da vida, para tirar um bocado daquela amargura que tinha crescido na alma dela feito uma erva-daninha. De repente se deu conta da maior diferença entre ela e o marido. Suzana pensava. Cláudio, vivia.

"Escuta, Lúcia, já que é assim, já que 'cê ama o Carlos e ainda vai esperar, uai, nunca se sabe, né? Um dia desses vocês ficam juntos de verdade".
Lúcia olhou para Suzana como se ela tivesse acabado de chegar de um outro planeta. E riu. Mas não foi aquele sorriso cristalino que Suzana invejava. Foi um sorriso amargo e doído.
"Um dia desses, Suzana? Um dia desses? Minha mãe sempre me falava que quando alguém diz 'um dia desses', é a mesma coisa que dizer 'nunca'. 'Cê não sabia disso, não? Um dia desses, amiga, é nunca". Suzana soltou a mão da amiga como se esta estivesse em brasas. O choque das palavras de Lúcia despertou Suzana de um sono mórbido no qual ela vinha vivendo há muito, muito tempo. Lembrou-se então, como se fosse hoje de manhã, o que ela mesma pensava quando ia sepultando, um a um, os seus sonhos, os seus projetos mais pessoais. "Liga não, Suzana. Um dia desses você faz isso". Para cada desejo morto e enterrado, ela se enganava dizendo para si mesma que, "um dias desses", iria em busca daquele projeto. Quantos "um dia desses" ela não deve ter dito a si mesma...?

Suzana sentiu uma tristeza aguda no peito, uma vontade imensa de deitar ali mesmo, no chão daquele Café, e chorar, chorar e chorar, até ficar seca por dentro, até murchar completamente e ser absorvida pela terra. Agorinha mesmo, minutos atrás, quando a amiga lhe disse que a bebida gelada com mate, açaí e leite era uma delícia, e que ela devia provar, pensou consigo mesma: "É, um dia desses eu provo". Mas ela sabia, assim como sabia que dois mais dois seriam sempre quatro, que jamais experimentaria aquela bebida. Suzana não conseguiu segurar as lágrimas. Ela chorava por si mesma, uma mulher que queria tanta coisa, mas não lutava por nenhum de seus sonhos, chorava por Lúcia, uma mulher que amava um homem que jamais seria dela e ainda tinha que conviver com outro, porque este se recusaria a sair de casa. Chorava por Cláudio, que parecia tão feliz na comodidade dormente de suas vidas. Será que seu marido tinha desejos também? E, se tivesse, será que os sepultava, dizendo "um dia desses" a si mesmo? Chorava por Felipe, um garoto tão puro, que se transformava em alguém completamente diferente do Felipe real, só para ser aceito entre amigos que, um dia, ele viria a descobrir que nunca chegaram a ser amigos de verdade. Suzana nunca sentira uma tristeza tão grande em sua vida porque, agora, estava consciente da fonte de sua infelicidade. Ser infeliz, simplesmente, é suportável. Mas ser infeliz e conhecer as razões que levam a tal infelicidade, é um martírio incomensurável. Olhou para Lúcia e, sem dizer palavra, tirou umas notas da carteira, que deixou sobre a mesa. Depois, levantou-se, foi até a amiga e beijou-a na testa. Então, foi para o ponto de ônibus, sozinha. Precisava voltar para casa.

***** 

A casa, que ela havia deixado brilhando de limpa e arrumada, mais parecia um campo de batalha. Havia roupas de Cláudio e Felipe espalhadas por todos os cômodos, latinhas de cerveja nos móveis e no chão da sala, pacotes vazios de salgadinhos pontilhando cada canto da cozinha e uma quantidade inacreditável de louça suja na pia. Cláudio estava deitado no sofá, num estado de torpor entre a vigília e o sono. Suzana foi até ele. Cláudio nem ao menos olhou para a esposa. Ela se ajoelhou a sua frente, para olhá-lo nos olhos, e perguntou, sem cerimônia: "Cláudio, 'cê tem sonhos? 'Cê tem vontade de viver um outro tipo de vida?". O marido olhou-a com uma cara de vírgula, como se Suzana tivesse lhe falado em russo. Demorou um pouco para conseguir decodificar as palavras da esposa e então, perdendo a paciência para uma prosa esquisita como aquela, respondeu: "Tá maluca, Suzana? "Cê bebeu? Que negócio é esse de 'sonho', de 'outra vida'? Me deixa quieto aqui, que amanhã eu tenho muita estrada pra dirigir. Por que 'cê não aproveita para limpar essa casa? Isso aqui mais parece um terreiro de macumba, tá doido, sô!"

Suzana olhou para Cláudio. O rosto dele ainda era bonito, mas seus olhos não tinham o mesmo brilho da juventude. Ele tinha apenas 39 anos, mas parecia um velho derrotado, fraco e ranzinza. Ela perguntou, ainda: "Cadê Felipe? Ele já jantou?". O marido, dessa vez, respondeu sem precisar pensar: "Felipe saiu com uma molecada da rua. Acho que foram ver um desses grupos de bichas tocar em algum lugar da cidade". Aquela resposta era o que faltava para Suzana ouvir e ter certeza. Olhou para a bagunça da sala e a sujeira da cozinha. Então pensou: "Não vou arrumar mais essa casa, pelo menos não agora. Um dia desses eu ponho tudo no lugar". E riu consigo mesma. Pegou um catálogo, procurou pelo número da rodoviária, levou o telefone para o quarto e fez uma única ligação. 

*****  

Da janela do ônibus, Suzana ia olhando Uberlândia ficar para trás. Levava consigo uma bolsa pequena, com não mais de meia dúzia de peças de roupa. Ela não era caracol para ficar viajando com a casa nas costas. E nem viveria mais em círculos, como a concha desse bicho nojento. Ela estava leve e serena. Não podia, ainda, dizer que estava feliz. Àquela altura de sua vida, ela não buscaria pela felicidade. Apenas se permitiria abrir para o mundo, desenterrar sua identidade perdida, descobrir quem era ela, Suzana, de fato e, só então, começaria a ressuscitar seus sonhos. Um a um. Cada um deles que ela mesma enterrou, enganando-se a si mesma, ao marido e ao filho. Aí, quem sabe, a felicidade chegaria até ela, como borboletas num jardim que acabara de florir. 

Na noite anterior, ela tinha reservado uma passagem. Comprara apenas a de ida. A passagem de volta, bem, ela decidiria mais tarde. Acordou cedo, deixou a comida pronta e ligou para Lúcia. Disse que teria que viajar às pressas, pediu mil desculpas por tê-la deixado sozinha no Café, e agradeceu à amiga. "Mas obrigada pelo que, criatura?". "Nada, Lúcia. Nada que eu possa te contar agora". Lúcia disse à amiga que conversaria com Carlos, que daria um jeito de Suzana não perder o emprego. Ela agradeceu, mas, bem lá no fundo, sabia que o emprego, naquele momento, não estava na sua lista de prioridades. Às dez da manhã em ponto, ela já estava na porta do Banco. Foi até o gerente e sacou todas as suas economias, tudo o que havia juntado desde que começara a trabalhar no consultório, aos 22 anos. Não era uma fortuna, havia meses em que não sobrava nada para depositar, mas seria o suficiente. Pelo menos para um recomeço. 

Seu telefone celular só tocou quando ela estava em Barbacena, uma cidade linda, cheia de flores, que ela via pela janela do ônibus, e que era exatamente o meio do caminho até o seu destino. Era Felipe, que chegara em casa há horas e não tinha ideia de onde a mãe pudesse estar. "Tá tudo bem, meu filho. Eu só saí pra dar um passeio. Escuta, tenta ligar pro seu pai. Se conseguir, pede pra ele ligar pra mim, viu?". Silêncio do outro lado da linha. "Felipe, filho, 'cê não precisa se fantasiar pra arranjar amigos, viu? Faz isso só se for o que 'cê gosta, de verdade. Se não, não vale à pena, menino". Mais silêncio. Suzana ouviu seu filho fungar do outro lado da linha. Sentiu pena do garoto. Mas ele era um bom rapaz, saberia encontrar a si mesmo. "Tchau, mãe". E desligou.

O celular só tocou novamente cinco horas mais tarde. Era Cláudio. E, quando ligou, Suzana já havia desembarcado e pegado um ônibus até o seu destino. Atendeu, num misto de euforia e ansiedade. "Onde 'cê tá, mulher? Que história é essa de passeio?" Suzana respondeu rindo, e até Cláudio se espantou com aquela risada, que ambos não ouviam há muito tempo. "'Cê quer saber mesmo, Cláudio? Quer saber dos meus sonhos, dos meus projetos?". Ele pigarreou e falou novamente, dessa vez preocupado de verdade: "Deixa disso, Suzana. 'Cê sabe que eu tô trabalhando na estrada, que não gosto de piada". Suzana era só risos agora. Respondeu: "Eu tô olhando o mar, Cláudio. Como é azul... Nunca pensei que pudesse ser tão grande e azul. Eu tô em frente ao mar de Copacabana, meu marido!". Cláudio engasgou-se com a própria saliva e tossiu furiosamente do outro lado da linha. "Mas, como assim? 'Cê tá no Rio de Janeiro, meu doce?". "Eu não sou doce, Cláudio. É, no Rio. Eu sempre sonhei em ver o mar, 'cê não lembra?". Não, ele não se lembrava. Ou fingia que esquecia porque, se quisesse, teria trazido "seu doce" pelo menos uma vez à praia. "Meu Deus, Suzana, que perigo isso...". Cláudio nem tinha ou sabia o que dizer. Se não havia diálogo entre eles há tanto tempo, como ele poderia engatar uma prosa filosófica àquela altura do campeonato, pelo celular? "Quando 'cê volta Suzana?", foi tudo o que ele conseguiu perguntar. Ela se levantou da areia, onde estivera sentada por um bom tempo, limpou as calças e bateu as sandálias uma na outra para calçá-las novamente. Suspirou, sorriu e respondeu, antes de desligar o celular: "Um dia desses, Cláudio. Um dia desses eu volto".        

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